Men e Gão

A imagem da publicação original é de câmera analógica, e ficou ruim. Nesta republicação, uso esta, produzida por IA
Pode parecer pouco criativo, de preguiçosa imaginação, mas não resisti em batizar de Men e Gão a dupla que vejo quase sempre de cima da ponte sobre o Rio Itabapoana (que une Bom Jesus/RJ com Bom Jesus/ES). No dia 20/6, mais ou menos 12h, Men e Gão receberam vários membros da comunidade de Urucubaca para dividirem o repasto farto e variado.
Tomando aquela prainha pestilenta — mais de excrementos que de areia — como sala de jantar, certamente pela assiduidade dos lautos banquetes ali existentes, Men e Gão parecem muito à vontade, como se deduzissem em sua lógica urubuzina que são muito bem-vindos ao local. Se assim não fosse — hão de pensar — por que o zelo no preparo de ambiente tão familiar a eles, não é mesmo? Assim, orgulhosos e reconhecidos pela benevolência, empenham-se em transmitir a melhor imagem de Bom Jesus a todos os passantes, enriquecendo o aspecto visual de ambos os municípios, conferindo ainda mais legitimidade aos slogans “Cidade sorriso”, no lado capixaba e “Bom demais pra se viver”, no fluminense.
Bela sina, para eles. Men e Gão representam briosamente os militantes da Morte, os estetas da Tristeza, os prosélitos da Desgraça, que parecem movidos por uma força poderosa e implacável. E o crocitar da dupla não deixa margens de dúvidas de sua gratidão. Escutem atentamente este corvejar em prosa e verso, que minha experiência em vernácubus (vernáculo dos urubus) captou:
Carniçal
Os peixes e os pássaros assassinados,/
que o Entorno do Caparaó reclama,/
por parte de muitos seres renegados,/
que de per si julgam-se bacanas,/
em perigos e matanças esforçados,/
mais do que prometia a força humana,/
inconsequentes e insensíveis edificaram,/
este reino que, por graças, nos legaram;/
E esqueçamos as memórias gloriosas/
deste rio, que ferozmente foram maltratando/
com lixo´sgoto em fainas prazerosas,/
para gáudio de quem vai urubuzando;/
E aqueles que por obras valorosas/
Se vão da lei da morte desfrutando,/
cantando os homenagearemos por toda parte,/
se a tanto nos ajudar o engenho e arte./
Cessem do Itabapoana ontem fé, hoje profano,/
ais e lamentos aos que o decompuseram./
Elimine-se do bom-jesuense e do ´caparoano´,/
a memória das pescarias que fizeram,/
que nós cantamos a este povo insano,/
a quem a Satã e à Meretriz obedeceram:/
cesse tudo o que a antiga musa canta/
que o carniçal valor mais alto se alevanta./
E vós, amigos nossos, obrigado./
tendes em nós um novo engenho ardente,/
e sempre em verso humilde celebrado,/
festejamos a agonia do rio alegremente;/
dai-nos agora um som alto e sublimado,/
um estilo grandíloquo e corrente,/
porque as vossas águas é mortandade,/
e mui queremos salientar-vos lealdade./
Dai-nos uma fúria grande e sonorosa,/
e não de agreste avena ou flauta ruda,/
mas de tuba canora e belicosa,/
que o peito acende e a cor ao gesto muda;/
dai-nos igual canto aos feitos da famosa/
gente vossa, que ao tormentório próprio tanto ajuda;/
que se espalhe e se cante em todo o mundo,/
as delícias deste cagatório nauseabundo./
Responde o Rio Itabapoana:
Men e Gão não devem ser recriminados,/
aqui agouram por enorme regalia,/
pois dest´alma e leito antes glorificados/
Restam desprezo, insanidade e felonia./
E ao chegar negro e cruel tempo vindouro,/
de sedentos em veneta quais em guerra,/
verão nababos com canudos de ouro/
degustar as últimas gotas desta Terra./
Obrigado, Camões, pela inspiração.
Publicado em junho/2007