Aqui eu guardo meus escritos.

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Bonjesino e Calçadino

Retornava de São José do Calçado dia destes quando, ao divisar a Praça São João, entrada de Bom Jesus do Norte, cheguei a me assustar com as duas figuras que vi ao longe. Melhor dizendo: dois guarda-roupas envernizados na tonalidade mogno! Ao me aproximar, a constatação: eram Bonjesino e outro ciclope até então desconhecido.

— Para aí, chefia — arremeteu o gigante em frente à moto ainda em movimento, aquela mão direita descomunal espalmada no ar em saudação à moda hitlerista. — Há quanto tempo não o vejo, meu cronista predileto — trovejou, já dando o abraço de paquiderme antes mesmo que eu parasse.

— Como tem passado, Bonjesino?

— Se melhorar, estraga. E você, chefia?

— Fora o reumatismo e a psoríase…

— Tá vindo de São José das Broas?

— Broinhas — respondi à menção da alcunha que antigamente dava até morte, mas que o povo calçadense atual aceita de boa.

Para quem não sabe, Bonjesino é meu imaginário coadjuvante, um mulato gigantesco no tamanho tanto vertical quanto horizontal. Boa-praça, de índole pacífica, ingênuo como uma criança, só fica zangado quando alguém critica os políticos brasileiros, especialmente os de suas Bom Jesus, que ele julga os mais competentes, realizadores e honestos do Planeta. Aí, sai de baixo!

— Broinhas, é? Nem todos, nem todos. Olha um broão ali — disse, apontando o indicador com uma unha duvidosa em direção ao seu acompanhante todo sorrisos.

— Tripé, chega mais — berrou, apresentando-me: — Meu primo, chefia. Mais broa que fubá com leite no forno.

— Muito prazer — disse o novo bólido, oferecendo a mão ameaçadora que deixou a minha mais que dolorida, com sintoma de esmagamento dos metacarpos.

— Ui, digo, prazer…

— Calçadino, às suas ordens — fez uma mesura tão mal enjambrada que quase caiu.

— Mas… Tripé?

— Apelido de Calçadino, chefia — atalhou Bonjesino — Inventaram uma vez que viram ele pelado…, e pegou.

— Entendi. A propósito, Bonjesino, você não tem apelido, pelo menos eu não conheço.

— Bem que tentaram, chefia, mas comecei a dar porrada a três por dois, aí pararam.

—  Qual era?

— Tromba.

— Entendi também.

— Zêinrriqui, viu como Calçado está uma maravilha? Nossa prefeita, além de bonita, elegante, é tão competente… Está transformando nossa cidade na mais moderna e desenvolvida do estado, do país, talvez do mundo… — jogou Calçadino por terra com estas palavras minha esperança de que um confronto ideológico em família pudesse equilibrar os discursos de adoração.

— Pegou a doença de Bonjesino? — retruquei.

Naquele momento quatro sobrancelhas espessas deram uma guinada vertiginosa, transformando-se em traços que lembravam os de cartunistas de terror. Dois pares de olhos me fulminavam.

— Não falei, primo, não falei? É esse… o escrevedorzinho rabugento, que adora criticar — disse entredentes Bonjesino. E antes que meu desmesurado acusador desfiasse contra mim todo o mantra acumulado ao longo de anos de uma amizade conturbada, pedi:

— Stop. Seu primo, pelo visto, é tão exagerado quanto você. Concordo que a prefeita de lá é bonita e elegante. Parece que ela é bem intencionada, mas…

— Nem mas, nem porém, todavia, contudo. O primo Calçadino está certo. Aquela cidade encantadora entre montanhas e flores está mais encantadora e mais entre montanhas e flores do que nunca.

Foi aí que minha antiga rapidez de raciocínio despertou de uma longa hibernação para alfinetar:

— Claro, claro. Em termos comparativos com lugares em redor… ­— pausei com uma olhada cínica para o nada, a boca num esgar de falso conformismo para dar mais ênfase no complemento: — … Calçado é mesmo uma pérola…

— Opa. Captei vossa mensagem. Poparáááá. Embora não tão privilegiadas pela mãe natureza como Calçado, as duas cidades de Bom Jesus estão um brinco, porque nossas autoridades nem conseguem dormir de tão preocupadas com a boniteza, com a paisagem e a mobilidade urbanas. Aliás, coitadinhos de nossos prefeitos, vereadores, secretários, e até carimbadores adjuntos. Chegam a trabalhar 24 horas por dia de tão comprometidos em resolver todos os nossos problemas…

— Sei…, sei…

— Não faça essa cara de paisagem, chefia. Aquela rua que você passa com essa moto velha todo dia pra subir o morro, por exemplo… Viu o calçamento que refizeram? Hein? Hein? Se eu fosse você teria vergonha de botar um troço tão decrépito pra rodar num tapete como aquele.

— Só faltava deixarem aquilo como estava, Bonjesino. Uma montanha russa, com mais entrâncias e reentrâncias que o Grand Canyon, isso sim.

— Mas só ficou desse jeito uns cinco anos, seu maledicente. O pessoal é rápido pra resolver as coisas…

Nesse momento Calçadino apartou:

— Falar nisso, a estradinha que contorna nossa cidade não ficou uma joia rara? Alguém por aí criticava tanto… — interrompeu o broão com olhos enviesados, como os da cigana oblíqua e dissimulada machadiana. — Quero ver agora os elogios — disparou, gestos ainda mais eloquentes que as palavras.

— Pode esperar sentado, primo, que em pé cansa. Gente como essa… — interveio Bonjesino desdenhosamente, com ares de muxoxo.

— Vocês acham mesmo que aquilo podia ficar do jeito que estava há mais de século? — exagerei. — Mais um segundo que seja com todo aquele barreiro e poeireiro? —- abusei do exagero, incluindo o neologismo para reforçar a provocação.

— Tsc., tsc, tsc. Como você aguenta, primo Bonjesino?

— Depois do que ele deitou falação daquele trechinho que vai de Bom Jesus ao Cruzamento de Itaperuna…, tô pensando em desistir dessa amizade, primo Calçadino.

— O que eu disse de mais? — perguntei. — Que depois do Cruzamento em direção a Itaperuna e ao Rio de Janeiro a BR parece uma rodovia da Suíça, e o nosso pedaço, um queijo suíço?

— Como se não soubesse que a estrada é estadual e não depende do município — lembrou Bonjesino, na defensiva.

— Saber, eu sei. Você que não entendeu quando eu disse da falta de representatividade, de pressão política. Quantos bom-jesuenses trafegam por aquela estrada diariamente, décadas e décadas pulando mais que pipoca na panela, correndo riscos por falta de sinalização. Incrível estar assim até hoje.

— Viu, Calçadino, como esse homem é ansioso? E virando-se para mim, explicou, num didatismo malemolente:

— Chefia, se liga. O que são alguns anos de espera para um benefício eterno? Não tem nem 30 anos que a estrada está ruim e você já quer logo asfaltinho niveladinho, acostamentinho direitinho, faixinhas amarelinhas e branquinhas, até plaquinhas indicativinhas…

— Para com essa viadagem, Bonjesino. O dia que morrer um parente seu acidentado…

— Cruzes. Xô urubu. Além de maldoso com nossas incansáveis autoridades, virou agourento também? Esse, primo, é capaz de criticar até o sagrado Lula, aquele bem-aventurado que tirou os brasileiros da miséria. Eu mesmo… snif, snif — um soluço o obrigou a uma pausa, mas esforçando-se para se recompor, Bonjesino prosseguiu: — eu mesmo só fui saber o gosto de um bife de paleta depois que o idolatrado Lula me deu Bolsa Família. Um santo…, um  santo.

— Do pau oco.

— Depois de velho deu pra obscenidades, chefia? Saiba que o divino Lula é homem com H. Casado, teve filhos…

— Nãoooo, Bonjesino. Só a casca, entendeu? Só a casca é de santo, por dentro é oco, oquinho da silva.

— Oquinho é você. Oquinho e ingrato. Mas vai ser castigado, ah, se vai. Sabe como? Tendo vida longa pra poder engolir, e até escrever, quando o Vaticano beatificar e depois santificar esse homem enviado por Deus.

— Querem saber? Passem bem, que já estou indo.

— Espera, chefia. Vamos marcar uma hora pra a gente conversar mais. Você, eu, Calçadino, Apiaquino…

— Quem?

— Nosso primo Apiaquino, de…

— Apiacá?

— Adivinhão!

— Adoraria — disse eu depois de um momento para me refazer do susto. — Mas não vai dar porque estou preparando minha mudança.

— Vai mudar pra onde, homem de Deus?

— Quirquistão.

— !!!???

Publicado em mídia impressa em junho/2015 e no Blogger em fevereiro/2017