— Seja bem-vindo, senhor. Em que posso ser útil?, recebeu-me a sorridente balconista, com uma cara de felicidade jamais vista, como se eu, como cliente, tivesse muita importância. Quase caí para trás. O que estaria havendo naquela loja comercial de uma cidadezinha das redondezas, um lugar onde o cliente, o freguês, o contribuinte, o paciente, o usuário e demais mantenedores da economia do lugar não costumam ser dignos de tanta atenção, às vezes vistos até como inoportunos? O inusitado me abstraiu dos objetivos que ali me levavam, e a falta de costume, a cultura da rispidez e da ignorância me causaram irritação com tanta simpatia inusual. Respondi-lhe com outra pergunta:
— O que a senhorita viu de tão bom ou bonito hoje? Um pássaro amarelinho, a cara-metade com uma incomum ereção? Só pode ser algo parecido, porque se a senhorita tivesse acertado na Lotomania certamente não estaria nesta espelunca com essa cara ridícula.
Ela continuava a sorrir, impassível, nenhuma mudança nas feições ternas e serenas. Um sorriso franco, aberto, absolutamente sincero.
— O Sr. deseja ver uma de nossas coleções? Olha, acabamos de receber…
— Não quero nada. E quer saber? Esses seus dentes clarinhos, bonitinhos, aposto que não são naturais, arrematei sem nenhum pudor da mentira.
Saí dali com o mau-humor característico dos ares e dos ambientes, fortalecido em particular às segundas-feiras, e fui a uma locadora pensando em algum filme do Van Damme, Stalonne, Swazenegger ou do Charles Bronson (poderiam ter feito um do Bin Laden em ação). Para meu desespero, o mesmo funcionário que na semana passada se prestava a um colóquio tão interessante com outra funcionária, e nem sequer me havia notado (ou fingiu que não) se dirigiu a mim como se eu fora um rei:
— Às ordens. Posso ajudá-lo na escolha? — disse, acrescentando sem aguardar resposta. — Qual o estilo que o cavalheiro prefere?
— Prefiro que você me responda qual a razão desse seu sorriso idiota. Não estou te entendendo; ou melhor, pensa que sou “entendido”?
Abri a porta com rispidez e saí. Não, algo havia de errado. Estava me sentindo um peixe fora d´água. O que estaria acontecendo na cidade? Que onda de cortesia e delicadeza era essa? Só falta o dono da loja de informática estar simpático, os caras daquela antiga gráfica que mais pareciam funcionários públicos, sem o costumeiro pedantismo e intensa soberba, pensei, arrepiado. Peguei o meu Monza 1986 velho de guerra e segui para uma revenda da cidade, disposto a avaliar a carroça. Lembrei-me que certa vez o vendedor (acho que o dono) lia um jornal sentado em sua mesa no escritório, e lendo e sentado ficou quando cheguei. Quando eu disse “quero trocar esse carro” ele fez um ar entediado e o máximo de atenção que me dispensara foi levantar os olhos sem abaixar o jornal e dizer:
— Só aceitamos na troca carros do ano 1990 em diante — e voltou ao exercício educacional da leitura, sem esperar alguma pergunta ou observação replicante. Mas agora, bolas, adentrei o pátio da mesma revenda e fiquei lívido quando o mesmo cidadão, com ar afetado de reverência e mesura fez um sinal tipo “pode entrar que a casa é sua“, um sorriso insuportável nos lábios.
— Ano 86? — apontou para a lata velha.
— Sim.
— Pela idade, está em bom estado…
— Nem tanto. Poupe-se das gentilezas, só quero saber o valor desse troço. Não tenho dinheiro para comprar nenhum dos seus.
— Ora, ora… dinheiro não é problema. O sr. tem nosso crédito — era inacreditável a polidez.
— Não tenho e não quero crédito coisa nenhuma, está me entendendo? E por favor, pare de sorrir.
De maneira alguma o homem esmoreceu no seu sorriso. Muito pelo contrário. Sua boca se estendeu ainda mais, e eu imaginei que por pouco os cantos dos lábios não se encontraram atrás do pescoço, na nuca.
— Temos aquele Corsa, aquele Pálio completo… Não, não. O senhor não é homem de carro popular. Que tal aquele Ômega, aquele…
Foi demais para mim. O sorriso tranquilo, inabalável, me fez perder decididamente a cabeça.
— Olha. Se você não recolher esse sorriso imediatamente, vou te enfiar a mão na cara!
Nada. Nenhuma reação. Nem um músculo se mexeu. E o sorriso continuava. Impassível, inquebrantável, intrépido. Levantei-me e lhe desferi um chute na bunda e um sopapo com a mão fechada bem na nuca. Porcas, arruelas e parafusos se soltaram e a cara foi ao chão, separada do pescoço, desmantelada de um encaixe perfeito. O maldito ainda sorria em meio ao zumbido das faíscas dos curtos-circuitos!
Imediatamente um clarão tomou conta da cidade e uma imensa nave desceu. Uma legião de clones sorridentes e gestos delicados para ela se dirigiu e foi entrando pela porta da frente, levando o companheiro seriamente avariado. Na porta de trás desciam atabalhoadamente, empurrando-se, rostos fechados, mal-humorados, os originais.
Ainda bem que tudo não passou de um susto. Desmontei a conspiração da civilidade a tempo, pensei depois, aliviado, na mesa imunda de um bar, enquanto pagava ao garçom carrancudo, oito das seis cervejas que tomei, mais os 10%.
Publicado em agosto/2002
