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Expulso das casas populares, Bonjesino elogia os políticos

— É chefia, viver de aluguel não é fácil, disse-me dia destes bonjesino, o amigo que já apresentei a vocês, o homem mais ingênuo na face da Terra, de boa índole, cuja crença nos políticos é diretamente proporcional ao seu corpanzil de paquiderme.

— Ahn?

— Eu disse que viver de aluguel não é bolinho não. Todo mês, chefia, separo RS 150 pra dona do muquifo. Mas vou sair de lá.

— Vai?

— Vou ganhar uma casa, exclamou o gigante, todo sorridente.

— A que te prometeram há 20 anos?

— Epa. Notei um tom irônico na sua voz, chefia. Não comece com as críticas, advertiu-me. E continuou: — aquela mesma. Não esquento a cabeça com a demora, porque sei que nossas autoridades públicas fazem de tudo pelo povo, se sacrificam por nós, coitadas. E se não me conseguiram uma casa até agora foi porque tiveram coisas mais relevantes a fazer em benefício da população e não sobrou dinheiro.

— Agora vai?, perguntei, tentando disfarçar a ironia.

— Anham. Agora não há dúvida. Eu até já tinha tomado posse da minha bela casa, lá pros arrabaldes na saída para o Barra Alegre, em Bom Jesus do Norte, pertinho do Pinicão da Cesan.

— Vamos por partes, interrompi. — 1) Pertinho do Pinicão com aquele odor agradabilíssimo que impregna corpo e alma, dia e noite, sete dias por semana? 2) Bela casa? 3) Não errou o tempo verbal “tinha tomado posse?”

Senti Bonjesino crispar-se, os olhos soltando centelhas de indignação, e antes de lançar pacotes de ofensas ao meu senso crítico balancei as mãos como a pedir um armistício antecipado, o aborto das nascedouras hostilidades, emendando: — Apenas responda.

Ele me encarou com desdém, e olhando para cima com a cara e os olhos enviesados, mentalizando pedido ao Pai para perdoar meus pecados, explicou com voz mansa, em tom professoral:

— Quando construíram o Pinicão no ano da graça de Nosso Senhor de 2000, chefia, disseram que o fedor ia durar uns três anos. Só porque até hoje a catinguinha persiste, já vem querer criticar? Você é capaz até de achar que a Cesan e a prefeitura pouco se lixaram para esse povaréu que vive ao redor do Pinicão, e disseram três anos só pra engambelar. Deu um respiro e continuou: — Nada disso. Apenas está demorando um pouquinho mais, homem impaciente e sem fé.

Julguei prudente me conter. Calei minha opinião de que aquilo vai feder por todo o sempre. Apenas o instiguei às demais respostas.

— Faltam a 2 e a 3.

— Bela casa, sim senhor — disse o colosso. — Espaçosa, arejada, bom acabamento. Tem até emboço. Quarto e sala, mas suficientes para mim, a patroa e os quatro filhos. É só arrastar, à noite, a mesa da cozinha pra fora, que dá pra todo mundo dormir esticado. E a parte três é que nos expulsaram.

— Expulsaram?

— Com Batalhão de Choque, cassetetes e tudo o mais.

— Como assim?

— Culpa nossa, chefia. Essa mania que temos de querer deixar de viver de aluguel a todo o custo.

— Continue…, demonstrei na voz ansiosa minha curiosidade.

— As casas estavam lá, só faltando dizer entrem. Então fizemos a vontade delas.

— Entraram à revelia…

— Entramos. Não tinha luz, nem água, nem nada. Mas viver…

— De aluguel?

— Não interrompe, chefia.

— Vá ao ponto Bonjesino. E não diga mais “viver de aluguel”. Quem faz isso são donos de imóveis. Diga viver pagando aluguel, ou viver para pagar aluguel.

— Você entendeu direito. Mania de ficar corrigindo os outros. Como eu ia dizendo, viver…, digo, pagar aluguel é uma tristeza. E muitos dos invasores nem aluguel podiam pagar. Ficavam de favor lá e cá, sem terem seu cantinho. Então, já viu, né? As casinhas para nós eram palácios.

— Mas não se pode desrespeitar as leis, e invasão é crime, ponderei.

— Somos uns desgraçados criminosos. Merecemos apodrecer na cadeia. Estou tão arrependido…, resmungou, fungando.

— Que é isso, Bonjesino? Também não é para dramatízar tanto…

— Quando penso que desapontei nossas autoridades, esses homens e mulheres que vivem dia e noite pensando apenas trabalhar por nós, pelo nosso bem-estar… Sinto-me desfalecer.

— Bobagem. O que eles têm de fazer é resolver o problema.

— Ah, mas vão. Não tenho a menor dúvida.

— Você disse burocracia, Bonjesino?

— Licença ambiental. As casas foram construídas sem licença.

— Como pode?

— É que estavam tão ansiosos para cuidar bem da população carente, que resolveram fazer as casas depressinha.

— E o que você pensa das autoridades que os tiraram de lá?

— Mais do que certas. Têm de fazer cumprir a lei.

— E das que fizeram as casas no vai-da-valsa?

— Também corretíssimas. Estavam querendo suprir as necessidades dos pobres, que muitas vezes não podem esperar tanto tempo por essa tal de licença.

— Então?

— Não já te disse, chefia, que os culpados somos nós? Vamos aguardar até quando Deus quiser. Eu mesmo, se esperei 20 anos, que custa esperar mais 20? Nossas autoridades sabem o que é melhor para nós.

Despedi-me do ciclope pensando cá com meus botões: fazer sem licença e retirar à força são atitudes igualmente censuráveis porque representam extremos. Por um lado, de inconsequência; por outro, de truculência. Pior para Bonjesino é que ambos os atores têm fortes argumentações para justificarem seus atos.

Moral da história: Bonjesino é que errou feio por ser tão impulsivo na busca febril de amenizar suas carências, sujeito pretensioso! Que seria dos que vivem de aluguel se não houvesse os que vivem de pagar?

Publicado em outubro/2010