Santa Zilda Arns

Tudo o quer tinha de ser falado da médica pediatra e sanitarista Dra. Zilda Arns Neumann já foi falado. Eu mesmo fiz um texto certa vez expressando minha profunda admiração por ela. Mas não poderia deixar de acrescentar algo mais, tentando com minhas limitações manifestar a dor que me vai no coração pelo passamento de tão nobre ser humano, vitimada pelo terremoto no Haiti num momento em que a Dra. Zilda praticava seu mister de proporcionar algum alento aos que sofrem.
Quem nunca brincou com o velho e bastante desgastado dito de que gente ruim não morre? Foi a primeira coisa que lembrei ao associar os escândalos políticos da hora, aquele do governo distrital de Brasília com o terremoto no Haiti. Enquanto essa gente entope meias e cuecas com dinheiro, boladas e mais boladas ilimitadas, Dona Zilda levava às crianças alimento para o corpo e a mente, transformando sua Pastoral na mais bem-sucedida instituição humanitária de que se tem notícia. Sem medo de soar chinfrim, sem receio dos clichês, enquanto ela alimentava as criancinhas, eles as matam de fome, entendendo essa fome das mais variadas maneiras: fome de saúde, de educação, de moradia decente, de melhores condições de vida, de dignidade, enfim.
E de fome mesmo, já que as esmolas oficiais nem sempre chegam para todos — as meias e as cuecas precisam estar sempre abastecidas para o caviar de cada dia, ora essa — A Dra. Zilda, vale lembrar, não cuidava apenas de gente nova em sua Pastoral da Criança que atende quase dois milhões de famílias em 4.500 municípios brasileiros — em 50.000 comunidades — com um exército de aproximadamente 300 mil voluntários (90% mulheres). Desde 2004 ela coordenava também a Pastoral da Pessoa Idosa, onde cerca de 50 mil anciãos recebem atendimentos variados. E tudo isso gastando pouco, aproveitando sobras de alimentos (a sua multimistura, uma farinha riquíssima em nutrientes, produzida com sobras de alimentos salvou milhares e milhares de vidas), orientando quanto a maneiras de prevenir doenças, de controlá-las, incentivando o uso do leite materno, do soro caseiro, realizando exames, pesagens, pedindo e organizando doações.
Tem coisas na religião que a gente não entende, fica na conta do mistério que é o elemento que faz manter a fé nos que creem. Porque é difícil compreender como um Deus justo, onipotente e amoroso leva para si de forma relativamente precoce uma alma dessa natureza, justo no momento em que ela ocupava um lugar numa das sucursais da Casa do Senhor, onde emprestava sua voz meiga e caridosa com o intento de minorar o sofrimento lancinante do povo haitiano, paupérrimo, oprimido, humilhado, carente de tudo, à mercê de lideranças políticas violentas e corruptas.
Sou agnóstico, mas falo em nome dos crentes: se Deus a chamou é porque quer torná-la santa imediatamente. O que, para mim, nem é preciso oficializar. Ela já é a minha nova devoção, independentemente se não professo a fé no modo convencional. E a evoco nos momentos em que a rudeza da vida insiste em querer me tornar insensível, egoísta, arrogante. Santa Zilda, velai pelos sobreviventes no Haiti, que a esta altura muitos devem se questionar se realmente foi por sorte terem se mantido vivos. Rogai por todos nós.
Publicado em fevereiro/2010