“Cema” de telefones, mas falar não sustenta; ou, podicema, que você saberá o que é lendo este texto

A palavra piracema, proveniente do Tupi, significa cardume de peixes ou a época em que grandes cardumes arribam para as nascentes dos rios normalmente em busca da procriação. É quase certo que “cema”, que não consta no Aurélio, seja uma corruptela de piracema, um neologismo criado no imaginário coletivo e difundido por desconhecimento ou mesmo por comodismo. Piracema? Reduz-se para cema, que fica mais conveniente e praticamente não muda a eufonia. Esta é a palavra que muito se tem usado hoje em Bom Jesus do Norte para traduzir satisfação pelas linhas telefônicas residenciais instaladas no município, que em abundante profusão (aí há uma redundância proposital) contempla a todos, sem privilégios. É o que se anda dizendo por aí: há cema de telefones na cidade.
Muito bem. Já não era sem tempo. Nada mais justo que essa cema venha favorecer uma cidade que sofria grandemente os dissabores da enorme carência de linhas que povoavam o sonho de muita gente desde priscas eras; que venha corrigir uma distorção entre a disponibilidade do serviço em outros municípios em relação a este, o que se revelava uma postura de descaso e parcialidade; que venha eliminar o constrangimento do convívio com orelhões primitivos, incapazes de completar uma ligação além das suas fronteiras, isso em pleno século 21 onde a humanidade ouve, via satélite, os sons de marte.
Mas agora, o estraga-prazeres: que contraste brutal há no Brasil! Já na época da Ditadura, que ninguém pode negar o mérito de também ter impulsionado com impressionante vigor as telecomunicações no país — emissoras de TVs e rádios apareciam às pencas — Chico Buarque comentava: “É televisão e futebol. Construíram estádios e essa rede impressionante de telecomunicações por todo o Brasil, e ao mesmo tempo uma degradação crescente em termos de educação e saúde”.
Passados mais de 30 anos essa constatação nunca esteve tão atual. Os antigos já diziam que “o sono sustenta”. Nos dias atuais o governo talvez deseje nutrir o povo pela fala, o que se revela mais uma contradição dos nefandos contraditórios que mandam na nação já que, ao contrário de dormir, falar despende mais energia. Bom Jesus do Norte é um exemplo desse contraste. Tem cema de telefones, mas uma população paupérrima onde muita gente não terá condição sequer de pagar pelo novo serviço.
Assim como a promessa de um frango por dia a todos e uma TV a cores em cada casa, e que revela agora a perversidade de sua intenção puramente eleitoreira onde nem o frango existe e a TV, quando há, tem de ser usada com parcimônia devido a escassez de energia elétrica, o telefone massageia o ego e dá aos humildes, àqueles que elegem, a falsa impressão de melhoria de vida.
Ha cema de telefones no país e falta de comida, de saúde, de educação, de segurança, de emprego, de moradia, de energia elétrica, etc. Mesmo piracema periga sumir dos dicionários pela degradação ambiental, mas quem sabe os lexicógrafos venham a validar a “podicema”, neologismo que traduzisse os motivos da bancarrota do país? O chato é que poucos teriam a capacidade de lê-lo nas entrelinhas dos discursos de campanha e conhecer o seu significado: políticos dissimulados certos da mamata.
Publicado em julho/2001