A poesia arrefece as dores. Eu me aliviei, me alivio e me aliviarei, e sugiro que você experimente a balsâmica substância

No outono da experiência, lembro-me da primavera verdejante de dúvidas e incertezas. De 18 para 19, a paixão avassaladora: Maria das Dores (e de dor é que falarei). Residente na mesma rua em que eu morava. Nenhuma abstração era capaz de ofuscá-la no pensamento. Último rosto do dia moldado pelas sinapses ao dormir; primeiro, ao acordar. No ônibus, em casa, “na rua, na chuva, na fazenda”, no trabalho, na escola… Ela! Papo com os amigos, assunto único, que entediava a eles tanto quanto me incendiava a loquacidade. Encantamento, fascínio. Um Ford Corcel GT conversível, sonho de bem material tão impossível quanto a materialização do sonho de um amor continuado, imaginando-a ao meu lado com as madeixas ao vento, aqueles cabelos lindíssimos, fartos, compridos, bem cuidados, — negros como as asas da Graúna, Alencar! — emoldurando uma face morena, meiga, angelical, olhos vivazes, sonhadores. Uns 10 meses depois, o dia aterrador:
— Tchau, José Henrique, acabou — foi a sentença cruel, dilacerante, pronunciada de chofre, menos por crueldade que pelo pragmatismo e objetividade da inocência que desconhece meias palavras, falsidade, dissimulação. Fui à escola, à noite, também naquele dia inolvidável, embora sem disposição. Tudo passou a ser tão horrivelmente diferente naquelas ruas, naquele bairro, naquela escola, naquela terra agora inóspita, absurdamente descolorida, incrivelmente solitária! Na sala de aula nada eu distinguia daquela algaravia patética, produzida por bocas patéticas, de colegas trajados com patéticas camisas apertadas, as calças patéticas de bocas largas, eles achando interessante tudo o que era patético. Parafraseando Nabokov, os eflúvios de equilíbrio, conformação, grandeza, otimismo, fé, esperança eram por demais tênues para que pudessem se distinguir na imaginação de um louco. Levanto os olhos casualmente. Então a lousa passou a me sussurrar com ternura, com indizível carinho:
Chora de manso e no íntimo… procura,
curtir sem queixa o mal que te crucia:
o mundo é sem piedade, e até riria
da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece, e é grande, e é pura.
Aprende a amá-la, que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
e será, ela só, tua ventura…
A vida é vã como a sombra que passa…
sofre sereno e de alma sobranceira,
sem um grito sequer, tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E peça humildemente a Deus que a faça
tua doce e constante companheira…
“Renúncia”, soneto de Manuel Bandeira. Anotei-o, decorei-o, lustrei cada letra, cada sílaba, cada palavra com o esmero de um joalheiro tratando suas pedras. A professora o havia transcrito para aquela aula de português, mas sei que com exclusividade para mim, inspirada por algum anjo. As palavras do poeta foram um bálsamo, um potente anestésico na psique. Amar a dor, transformá-la em alegria, sofrer sem gritar…, que sacada. E ainda um rabo de papel no traseiro do mundo impiedoso, a ridicularizá-lo. Genial!
Salvou-me a poesia. Daí, amasiei-me com elas, em especial com os sonetos, que Guilherme de Almeida disse ser “a fôrma da perfeita forma” e “quatorze degraus da perfeição”. Genérica, de larga amplitude, é uma panaceia.
Encerro
Pode ser que este texto seja objeto de alguma troça, umas caras de paisagem, semblantes irônicos, risinhos sarcásticos, sobrancelhas em trêmulas volutas até os topos de crânios calvos. Mas inclusive a estes, mais que lhes dar a conhecer uma quadra de vida juvenil, desejo afirmar minha convicção inspirada por Schopenhauer, que escreveu: “quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência, com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma história da dor”.
E a poesia fortalece o espírito para essa que é inexorável na vida de todos nós, sejam as físicas ou as da alma.