Assassino em Bom Jesus

Estava um calor de lascar em Bom Jesus do Itabapoana. A temperatura naquele dia devia ter chegado, brincando, aos 42 graus, e mesmo àquela hora, já no lusco-fusco de fim de tarde, ainda beirava os 40. Esta característica de lugar quente, abafado, seja talvez uma das razões da cidade ter tantos bares, uma infinidade. Escolhi, portanto, com facilidade um deles, localizado próximo à praça principal a fim de me aliviar da sede. Chegando ao balcão, puxei para o canto um daqueles tamboretões que me fazem sentir um certo complexo de superioridade, deixei a sacola de supermercado que carregava encostada num canto escolhido estrategicamente, de forma que eu pudesse vigiá-la todo o tempo e pedi ao balconista uma cerveja:
— Estupidamente gelada, recomendei.
Sorvi o primeiro copo de uma só talagada, experimentando com raro prazer a sensação do líquido gelado e o sabor da cevada mais perceptivo nos primeiros goles. O bar estava vazio e o balconista lia, com ar entediado, um exemplar da Revista Status. Tive a impressão de que ele não enxergava muito bem devido à proximidade da revista, quase colada ao rosto. Vez ou outra ele a abaixava, com indolência, dando uma olhadela de relance pelo ambiente.
Numa dessas olhadelas seu olhar se fixou com mais atenção na porta de entrada do estabelecimento e num gesto automático de curiosidade virei a cabeça para olhar também. Era outro freguês, certamente vitimado pela inclemência do calor, buscando amenizá-lo da mesma forma que eu. O sujeito era alto, forte, mais ou menos da minha estatura, 35/40 anos, relapso no trajar, mas o que mais me chamou a atenção era a aura de mistério a envolver aquela criatura. O olhar era frio e penetrante, incrivelmente alheio, e os olhos, pretos como o azeviche, se encontravam relegados ao recôndito das órbitas. Quando aquele sujeito taciturno puxou outro tamborete e se sentou ao meu lado senti um mau presságio, um certo desconforto espiritual, não sei bem. Um fato curioso chamou ainda mais minha atenção: coincidentemente ele também portava uma sacola do mesmo supermercado, incrivelmente parecida em tamanho, formato e peso com a que eu portava. Ele a descansou no chão, a uma pequena distância da minha e com uma voz rouca, forte, absolutamente impessoal e autoritária, ordenou:
— Um uísque. Duplo. Sem gelo.
O balconista, que nesta altura havia transformado o tédio em profundo respeito e atenção, perguntou timidamente:
— Só tem Old Eight, serve?
Ele não se dignou responder. Fez um rápido aceno de positivo, atendido de imediato pelo transido comerciante, que achou prudente caprichar no “choro”, quase enchendo um copo americano. O homem virou tudo num só trago, o bocado que restou na boca ele gargarejou como se estivesse a limpar os dentes e ordenou novamente:
— Outro.
O segundo copo foi esvaziado com mais parcimônia. De soslaio eu observava o estranho, o suor agora mais abundante pelo início do efeito do álcool escorria feito uma fina cascata e empapava suas vestes rotas, amarfanhadas. Talvez por causa do uísque que bebia gulosamente ele começou a se metamorfosear de sua quietude, virou-se para mim e cravou o olhar perscrutador:
— O que você acha daquele cara que come as vadias e guarda os peitões de relíquia?
Essa pergunta incrível, seca e direta, feita com uma voz tão sinistra me causou calafrios. Difícil descrever o que senti no momento, mas controlei meu desconcerto e me ative nos fatos que originaram aquela pergunta: estava havendo na região uma onda de cruéis assassinatos de mulheres por um maníaco, que as seviciava e, com perícia, secionava seus seios, provavelmente para os colecionar. A histeria era geral; o assunto, predominante. A polícia não conseguia pistas do assassino. Buscas e averiguações se mostravam infrutíferas. Hoje mesmo mais uma vítima foi descoberta aqui por perto. Encarei com certo esforço a lúgubre figura, evitando críticas contundentes:
— O cara é hábil, inteligente, sagaz. Mas ele devia seguir o conselho do Maluf, “estupra, mas não mata”´, respondi constrangido, envergonhado do machismo da expressão, mas ciente de ser a resposta mais apropriada naquele tenso instante.
— Aí é que está, retrucou ele. — O melhor deve ser exatamente contemplar o pavor da morte, atingir o paroxismo do êxtase numa transa alucinante que somente um corpo em agonia pode proporcionar — falava pausadamente como que degustando com prazer cada palavra. À medida que ia falando seu rosto adquiria uma expressão mais assustadora, uma emanação demoníaca parecia fluir de suas feições. Já no quarto ou quinto copo de uísque ele se entusiasmava cada vez mais nas conjecturas macabras:
— É muito fácil fazer o convencional, disse com um desdém que evidenciava aversão pelas mulheres. — Elas só querem vadiar, só pensam ser modelos, atrizes. Bote uma roupa de marca, finja que é graúdo e trace elas fácil, fácil. Aí perde a graça, some o tesão. Elas é que obrigam, por fáceis e vulgares, a que o cara busque emoções mais consistentes, mais compensadoras, está me entendendo?, tentava ser explícito em seus conceitos doentios.
Estimulado pelo efeito da bebida o homem demonstrava identificação com o maníaco num crescendo assustador. Os feitos do assassino eram minuciosamente relembrados e glorificados, mas agora eu não mais o ouvia, desviado que fui em minha atenção pelo filete de um líquido vermelho e grosso que escorria debaixo da minha sacola do supermercado. Que diabos, pensei. Só me faltava a porcaria da sacola vazar! Minha preocupação aumentou, quase entrei em pânico quando ouvi barulho de sirenes ao longe. Era a polícia! Mas num átimo de segundo logrei um feito sensacional que aliviou por completo minha tensão. E, por coincidência, ao ouvir o barulho das sirenes o estranho se levantou meio grogue, pagou a conta, pegou sua sacola e foi embora com passos apressados.
Estava eu agora mais à vontade sem aquela companhia indesejável. Pedi outra gelada e fiquei matutando sobre aquele homem assustador. Difícil entender como pôde se abrir comigo daquele jeito, como pôde falar daquela forma com um estranho. O barulho agora bem próximo me tirou da abstração. Várias viaturas numa balbúrdia ensurdecedora de buzinas misturadas com rangidos de pneus e o estardalhaço das sirenes pararam defronte ao bar. Um bolo espesso de policiais se dividiu em várias direções. Um oficial entrou esbaforido e com o peito arfante, perguntou:
— Alguém viu um homem alto e forte com uma sacola de supermercado por aqui? É o maníaco — explicou a uma cada vez maior plateia de curiosos. — Uma testemunha o viu sair sorrateiramente do local onde assassinou a moça de hoje, completou, para estupefação geral.
— Eu vi, respondi prontamente. Ou melhor, nós vimos, afirmei olhando para o balconista, que assentiu com a cabeça.
— Onde, onde?
— Estava aqui agorinha, tomando uísque. E pelo papo dele não tenho dúvida que é o maníaco, afirmei com satisfação.
O oficial saiu em disparada, as viaturas iniciaram de novo o ritual barulhento e confuso. Saí também em seguida. Precisava de um banho para relaxar, o dia havia sido frenético. Entrei no meu carro e tomei a direção de Bom Jesus do Norte, lugarzinho acolhedor que eu escolhi para passar este dia memorável. Quando acabo de atravessar a ponte vejo um rebuliço nas imediações da pracinha principal, chamada Astolpho Lobo. Parei atrás da Igreja e discretamente segui na direção do tumulto. Guardei uma distância prudente do epicentro da confusão, firmei o olhar e vi o cara dos uísques sendo algemado e sua sacola passada de mão em mão pelos policiais. Em todos, um misto de pavor e nojo pelo que viam.
Lembrei-me da outra sacola e senti curiosidade de conhecer seu conteúdo, o que faria logo após retornar ao carro. Não contive um sorriso irônico de triunfo, de admiração própria pela minha agilidade de movimentos e rapidez de raciocínio.
— Que otário, balbuciei escarnecendo do infeliz. — Estava tão bêbado que nem percebeu quando troquei as sacolas…
Publicado em setembro/1998