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Bonjesino: um renegado otimista

O otimista exacerbado e resignado, além de chato é um inútil na medida em que nada questiona, pois para ele tudo está bom, se melhorar, estraga. Bonjesino é a personificação desse espécime:

— E aí chefia, como vai a vida? — perguntou-me certa tarde ao voltar do trabalho, mãozorra a segurar o cabo da enxada nos ombros.

—  Nada boa, Bonjesino, nada boa. Sabe…, problemas, tristeza pela morte do Tim, do Frank Sinatra, e agora do Leandro.

— Seu problema, chefia, é que você só olha o lado negativo das coisas. Tente encarar pelo lado bom.

— Mas o que pode haver de positivo na morte desses grandes artistas?

— A banda, chefia, a banda. O homem deve estar querendo formar uma banda.

— Que banda? Que homem?

— São Pedro, ora. E pelo visto será bem eclética, numa bela mistura de ritmos. Esse São Pedro… Com certeza não chamou os caras à toa.

— Sério, Bonjesino. Estou triste pela morte deles, mas também muito preocupado com outra coisa. Minha mulher tomava aquele remédio contraceptivo oral, o tal do Microvlar que o Laboratório Schering estava falsificando com farinha de trigo. Faz quase dois meses que a menstruação não veio, e não quero nem olhar o resultado do exame. Vai ser foda se vier outro bacuri nesta altura do campeonato!

— Deixa de heresia. Se Deus resolveu te dar mais um, ou dois, quem sabe três de uma só tacada, você tem que aceitar numa boa agradecendo pelo privilégio, e não ficar aí se lamentando feito uma puta arrependida.

— No dos outros é refresco, né Bonjesino? Isola. Sabe quanto custa um pacote de fraldas? E a cada dia que passa as coisas vão ficando mais difíceis. Falta o dinheiro, sobra o desemprego. Você tem visto a galera que vem aparecendo no horário político? Cada figura de arrepiar os cabelos!

— Deixe de maledicências. Nossa classe política é o que há de mais nobre, digna e honesta em toda a face da Terra. O Brasil será a maior nação do mundo nas mãos destes abnegados.

— Sei. Este é o discurso inclusive dos componentes da fina flor da malandragem. Alguns deles, quando aparecem na telinha, sinto um arrepio de pavor e levo instintivamente a mão no bolso. Mas não passa de reflexo condicionado da época em que eu tinha algo a perder. Hoje os bolsos só andam vazios.

— Chefia, desculpe, mas tenho que ir — disse com ar enfadonho e visivelmente contrariado, completando: — Pessoas como você não têm escapatória. Jamais vão conhecer a verdadeira felicidade — arrematou com um seco e formal boa-noite. Girou nos calcanhares nas surradas Havaianas com as tiras sustentadas por pequenos pregos trespassados no solado, e tomou a direção do barraco de dois cômodos.

Conhecedor dos seus hábitos, eu sabia que antes ele passaria no armazém para comprar querosene para a lamparina, tomaria uma purinha e talvez desse uma filada na TV do Arnoldo e assistisse um pouco ao programa do Ratinho. Ou então iria até ao portão da Dona Noêmia para ouvir de longe músicas do SPC ou Negritude Júnior, e com um pouco de sorte talvez a velha pusesse para tocar alguma do Claudinho e Buchecha, seus artistas preferidos. Em seguida repousaria seu corpulento esqueleto no desgastado catre, pensando na esposa que havia fugido com outro, aguardando o clarear do dia para a rotineira jornada de trabalho no ofício de roçador de pasto free-lance.

Publicado em junho/1998