Calçadino me sacaneia com Bonjesino. Quem conta é Apiaquino
No extremo sul do Espírito Santo, na sub-região do ABC capixaba — Apiacá, Bom Jesus do Norte e São José do Calçado — vive, ou melhor, existe literariamente, um trio de primos: Apiaquino, Bonjesino e Calçadino. Eles encarnam a ingenuidade popular diante da política local. Com esse trio, crio diálogos que misturam crítica, humor e afeto para expor absurdos com leveza. Ingênuos e de coração mole, são trabalhadores, honestos e crédulos: emocionam-se com discursos, acreditam em promessas e festejam pequenas conquistas como se fossem epopeias. Pacíficos como hinos, respondem às minhas provocações com ironia, vendo em mim apenas o ingrato que reclama do paraíso.

— Ah, ah, ah, ah, ah, sabe quem eu encontrei aqui em Calçado, Bonjesino?
— Quem, Calçadino?
— Aquele escrevedor mal-humorado que adora criticar nossas impolutas autoridades… Como é mesmo o nome dele?, huummm, humm, ah…, Zêinrique!
— Ih, Calçadino, ainda bem que ele é meio metido e não dá muito as caras pela cidade. Senão você ia ter de aturar aquele lenga-lenga todo dia. Buraco na rua…, trânsito ruim…, saúde, educação, cães vadios arrebentando sacolas de lixo… Ele é capaz de implicar até com o asfalto da via principal de Bom Jesus do Norte; reclamar das pedrinhas soltas nas ladeiras calçadenses e da catinguinha de esgoto que sai dos bueiros de Bom Jesus do Itabapoana. Ele é um exagerado, isso sim!
— Se é… Hoje, por acaso, encontrei a figura no Restaurante da Bete. Sabe onde ele estava morando? Serra Pelada…
— Estava?
— Ficou só 15 dias numa casa alugada. Lembra daquele chuvão no final de fevereiro? Nem te conto, Bonjesino, nem te conto…
— Fala aê, primo.
— Ah, ah, ah, quá, quá, quá, ai. Não estou aguentando de tanto rir…
— Fala logo, filho de Deus.
— Estava lá o homem no teclado escrevendo aquelas porcarias de sempre, quando bem em cima da papelada cai uma verdadeira tromba d´água!
— Dentro de casa?
— Kkkkkkkk. Imagina o susto. Ele disse que se não tivesse gravado no celular a cascata de água, ninguém ia acreditar. Bonjesino, você precisava ver. Um dilúvio! Ah, ah, ah. Parecia que alguém fez de propósito um desvio na calha, passando ela para o lado de dentro…, ah, ah, ah… Milhões de metros cúbicos por segundo, talvez bilhões ou trilhões… bem em cima da mesa. Só teve tempo de salvar o computador, por instinto. Na cozinha também… Nos bicos de luz… O globo da lâmpada encheu de água e…, ploft, se espatifou em pedacinhos. Ah, ah, ah… Bem feito. Tomou, papudo?
— Ah, ah, ah, ah, ui, ui, quiá, quiá, quiá. Pera aí, Calçadino, me deu dor de barriga…, ah, ah, ah… — Só 15 dias? E pra onde ele foi?
— Divineia.
— Mudando de pau pra cavaco, Calçadino: tirando aquela mania de criticar Deus e o mundo, até que o Chefia é gente boa… Eu gosto de conversar com ele…
— Também gosto. Mas é tão enjoado… Imagina que a dona da casa mandou consertar o telhado e mesmo assim ele não quis ficar.
— Com medo de mais água?
— Mas não da chuva. É que a dona não quis trocar as duas caixas de amianto… Aí ele ficou com medinho de pegar câncer…
— Carece não, né Calçadino? Ele já tá prá lá de Marrakesh, dobrou o Cabo da Boa Esperança faz tempo…
— Depois de velho ficou ainda mais implicante, Bonjesino. Você sabe que ele adora Calçado. Mas imagina com o que ele tá encafifado agora?
— Que devia haver só descidas na cidade, e não tanta subida a prejudicar aquele esqueleto com mais de 60 que já pode andar de graça nos busus?
— Com os nomes dos bairros, Bonjesino. Nomes dos bairros! Cismou com Biquinha, Vala… Carrapato, então…, quase enfarta! Serra Pelada, Panelão… E Buraco Quente? Ficou possesso: “Não pode, não pode”, berrou. “Uma cidade tão bonita como essa, que inspira e transpira cultura, com nomes de bairros tão exóticos, para dizer o mínimo?
— Você não explicou que alguns deles são apelidos que pegaram ao longo do tempo, Calçadino?
— Falei, primo, falei. Mesmo assim ele continuou amuado.
Bem. Esse papo aí quem me contou foi Apiaquino, o primo de Bonjesino e Calçadino, que completa a tríade puxassaquista destas bandas. Para eles, os políticos da região são a quitessência de todos os semelhantes e similares mundiais. Em nível nacional, há um verdadeiro santo: Lula. Aliás, Bonjesino, o mais fervoroso e escandaloso dos três ciclopes penitencia-se numa mesura exagerada, as faces contritas, disparando seu vozeirão cheio de perdigotos em direção a mim sempre que se menciona Lula. Olhos marejados num misto de emoção ao evocar o ex-presidente, e revolta para comigo dirigem-se aos céus:
— Santo. Milagreiro! Meus 100 real que recebo de bolsa família todo mês, reli-gio-sa-mente (escande bem as sílabas)…, hein?, hein? Se não fosse ele… — abusa do hein, quase enlouquecido de emoção.
Ah. Eles falavam de mim por meio dos respectivos telefones celulares, essas maquininhas oriundas das privatizações que o petismo era radicalmente contra. Lembro-me perfeitamente: a defesa ruidosa do jurássico setor de telecomunicações à época das infaustas Telestes e Telerjes presumo que só não chegava às vias de fato porque, do lado do bem, o mocinho era um tal de Serjão, o parrudo ministro das Comunicações naquele governo tucano de FHC.
Grande Serjão! Seria tão útil hoje em dia… — se é que me entendem os viúvos e as viúvas da atual oposicinha.
Produzido em março/2016