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Carta aberta ao presidente Lula

Senhor presidente Lula.

Sei que é praticamente impossível que esta missiva lhe chegue fisicamente aos olhos, mas a mensagem que tentarei transmitir faço votos que se espraie num canal invisível e desague por osmose na sua alma. De toda sorte, estou convicto de que estas linhas, traçadas sob a influência do desapontamento produzirão uma química em meu íntimo que mitigará um pouco a indignação; minha e a de alguns outros que críamos ser o senhor um homem capaz de mudar o Brasil para melhor.

Veja, senhor presidente, como é a vida. Antes, votei no Fernando Henrique e me arrependi de não ter votado no senhor; hoje começo a me questionar se não teria sido melhor tê-lo preterido em favor do Serra, no último pleito. Afinal, dada a similaridade do seu governo petista com o do tucano, haveria sido melhor optar pelo original, abaixo à pirataria! Na urna eletrônica instalada na Escola Antônio Honório, aqui na minha cidade de Bom Jesus do Norte/ES, eu, excitado pela esperança, ajudei a sufragar o seu nome. Nos chips da parafernália eletrônica viajaram os bites da ansiedade por melhores condições de vida para o povo, da virtual certeza da confrontação das elites, da expectativa pelo início da reversão das injustiças sociais, da confiança de que o nosso país iria trilhar, finalmente, o rumo das nações amadurecidas política, econômica, cultural e socialmente.

E o que vejo um ano e dois meses depois, senhor presidente, é desanimador! Em lugar do desenvolvimento econômico que rebocaria emprego e renda, contemplo impotente o velho establishment da agiotagem oficial que continua a sugar de maneira voraz o que pode, elevando à vastidão saturnal a inversão de valores segundo a qual é mais vantajoso especular que produzir. No espaço insidioso das mordomias palacianas, que eu esperava ser preenchido com austeridade, vejo cadela transitando em veículo oficial; construção de churrasqueira de R$ 3,3 milhões para deleite dos poucos privilegiados que realmente conhecem a “fome zero”; viagens por conta do erário em passeios turísticos ao exterior, e até uma aeronave Airbus zero-bala, que custou a bagatela de US$ 57 milhões (quase RS 170 milhões), tão suntuosa que no banheiro não há papel higiênico: a privada limpa o fiofó do freguês automaticamente.

Convenhamos ser isso um requinte até mesmo para a classe abastada que o senhor tanto combatia! Eu antegozava ali, na urna, com o peito inflado de civismo, o fato de que hoje os empresários brasileiros, os terceiros mais apenados em todo o mundo pela inacreditável carga tributária tupiniquim estivessem começando a desfrutar do alívio dessa carga que o senhor combatia apopleticamente quando em campanha. E hoje contemplo, com a sombra espessa da decepção que, ao contrário, a Cofins subiu de 3% para 7,6%, a CPMF vai virar vitalícia, a alíquota do IR em 27,5% foi prorrogada ate 2005, e neca de correção da tabela para as pessoas físicas. Tudo isso arrematado com a irônica assertiva, tal e qual seu antecessor se referia aos “vagabundos aposentados” de que o empresário brasileiro deve parar de reclamar e vender mais.

Vender como, senhor presidente? Tenho notado no senhor uma coisa que vem me deixando encafifado. Eu intuía que quando cessassem as lágrimas e o sentimentalismo chinfrim, assumiriam o palco a firme capacidade decisória e as ações necessárias. Mas como isto não ocorre, por que pelo menos não voltam os prantos, que atenuam nossa zanga? Teriam sido sublimados pelo fascínio do poder?

O senhor, que pelo passado de luta e idealismo poderia figurar em destaque na história, parece ter esquecido que ela é feita de atos, atitudes e ações permanentes que envolvem mais do que boa-vontade, mais do que bons sentimentos, mais do que discursos inflamados tão estéreis quanto bem articulados. Governar é mais complicado do que girar metralhadora de palavras, do que criar retóricas infantis indiscriminadamente, do que relutar em sair dos palcos efêmeros das campanhas rumo ao prolongado e difícil mister de executar.

As 1.332 pessoas que o senhor vai nomear para cargos em comissão, e as 1.465 para funções gratificadas no governo, que tomarão quase R$ 60 milhões adicionais do contribuinte, ao ano, sem concurso público (ou seja, as apaniguadas), não são, por si sós, capazes de legitimar toda a obra cujo prólogo o senhor tão bem estruturou. As demais 180 milhões precisam ser contempladas no enredo que leve a um epílogo surpreendente e desconcertante aos autores covardes, incapazes e sem imaginação, que há décadas concebem desfechos previsivelmente perversos ao personagem principal: o povo brasileiro.

Publicado em fevereiro/2004