Aqui eu guardo meus escritos.

Obrigado pela visita.

Uma noite longa demais

Bom Jesus amanheceu com o céu carregado de densas nuvens. O horizonte cinzento compunha um cenário triste, opressor, parecendo que a natureza queria contribuir com uma decoração característica para meu trauma naquele dia. Catherine, uma amiga, quarentona simpática, ótimo ser humano, vinha de cabeça baixa com um lenço a enxugar o nariz. Atravessei a rua para cumprimentá-la, mas quando me aproximei, senti um calafrio.

A face irretocável do desespero!

Rosto inchado, borrado pela maquiagem diluída pelas lágrimas que fluíam aos borbotões.

— Que bicho te mordeu, Catherine…? Epa…, epa…, não chore…, calma…, calma…

Praticamente arrastei-a até um banco da Praça Astolpho Lobo. Antes de sentar ela desabou em meu ombro num choro ainda mais convulsivo, descontrolado, balbuciando palavras desconexas.

— Minha filha… ela… fotos… íntimas…

— Hein?! — exclamei sobressaltado, pensando na bonita jovem de 18 anos, carinhosa, simpática, um doce de criatura, como a mãe. Para mim sempre será aquela garotinha que vi crescer, considerando-a como minha própria filha. — O que aconteceu com Tárin? — perguntei já também meio descontrolado, adrenalina a mil.

Em meio aos soluços, as informações começaram a surgir:

— Na internet, droga, na internet… mais prantos a obstar minha aguda curiosidade.

— Internet… O que tem a internet? — indaguei com uma calma aparente que estava longe de sentir.

— Um montão de fotos…, até filmagem…

Em segundos senti o peso do drama, e com a revolta instantânea que de mim se apoderou encarei-a nos olhos:

— Quem?

— O ex.

— O cara de Vitória que ela pretendia me apresentar?

Afirmou com um movimento da cabeça.

— E ela?

— Tentou se matar… Muitos comprimidos…

— Meu Deus!

— Os médicos lavaram seu estômago.

— Maldito…, balbuciei.

Depois de acalmar Catherine e levá-la para casa, onde vivia só com a menina, inteirei-me dos detalhes do ocorrido. O roteiro, embora monocórdio, repetitivo, é sempre devastador para a vítima, os familiares, os amigos. Extremamente traumático, marca a ferro e fogo as vidas de tantos que gravitam na órbita das famílias. Destrói sonhos; dilapida a auto-estima; deprime, angustia e envergonha ad eternum. Tamanha sordidez, insensibilidade, malevolência de um crápula brutal que fotografa e filma as parceiras nuas, em posições constrangedoras nesses aparelhinhos infernais, para depois compartilhar o material abjeto na Web, teria de ter uma punição. Canalhas desse naipe são criminosos covardes, imorais, aproveitadores da vulnerabilidade e ingenuidade juvenis.

Uma semana depois.

Como Vitória é bonita! Caminhava no calçadão da Praia de Camburi, meus sentidos transformados em mil olhos argutos. Sabia apenas que o canalha era homofóbico (dizia sempre a Tárin que detestava gays; inclusive agredira um rapaz que se engraçara com ele certa vez), e de que morava ali por perto. Não tendo o endereço, tinha esperança de encontrá-lo num dos vários bares e restaurantes da orla. Nunca nos vimos, mas portava algumas fotos recentes, não seria difícil identificá-lo.

Fiquei uma semana de atalaia, ampliando o espaço geográfico de minha busca à medida que os dias transcorriam, passando a monitorar shoppings, danceterias e outros points. Minha determinação valeu a pena. Certa tarde o encontrei comendo um lanche num desses famosos fast-foods. Não havia dúvidas. Porte atlético, de 35 a 40 (velho para Tárin), penteado tipo Moicano, à la Neymar (velho também para isso), exatamente como nas fotografias. Estava acompanhado de vários adolescentes de ambos os sexos.

Pedi um lanche e me sentei discretamente numa mesa ao lado. Mastigava devagar, atenção exclusiva para a algaravia naquela mesa. Experimentei um frêmito de satisfação por ter renovado a diária com a locadora de automóveis. Uns 30 minutos depois o grupo se desfez. O sujeito se dirigiu ao ponto de ônibus, próximo ao local onde eu havia estacionado o carro. “A sorte é minha cúmplice”, pensei. Ele tomou um micro-ônibus e parti no encalço. Desceu justamente nas imediações que percorri durante uma semana em Camburi. Parei o carro e o segui a pé. Atravessou a pista e ganhou uma via transversa. Caminhou mais uns 300 metros até chegar a um prédio de apartamentos. Entrou. Esperei alguns minutos e me dirigi ao prédio. Toquei a campainha da portaria. Uma voz metalizada no interfone perguntou o que eu queria.

— O rapaz que subiu agora perdeu uma correspondência. Poderia entregá-la?

— Passe ela por baixo da porta — respondeu o porteiro energúmeno, sem sequer me olhar pela imponente vidraça.

Ato seguinte, já de volta ao carro, liguei para a minha correspondente em Colatina, uma balzaquiana de rara beleza, classuda, irresistivelmente sedutora:

— A águia pousou — informei, recebendo um ok como resposta.

No dia seguinte devolvi o veículo à locadora, tomei um táxi e rumei para a rodoviária. Chegando em casa, liguei o computador e acessei meu gerenciador de e-mails. A mensagem irônica me falava baixinho, quase num sussurro:

— Vou me apaixonar por ele. É tão loquaz…, agradável…, romântico…

Abri a página do MSN:

— Teclou naquele mesmo dia — digitou minha musa colatinense.

— Rápido no gatilho.

— Disse ter ficado surpreso com a forma inusitada pela qual informei meu e-mail por intermédio de uma carta entregue na portaria por um desconhecido…

— Gentileza minha — atalhei.

— … Mas que não via motivos para não fazer contato — ela continuou.

— Ele comentou sobre as fotos?

— Disse que foi justamente por elas que se animou.

— “Sua filha” é realmente um mulherão!

— Você exagerou. Esses monumentos podem dar na pinta que são baixados da internet. Na próxima vez escolha uma filha menos sensual para mim

— Sei o que faço. Que dia vai ser o encontro?

— Na próxima sexta.

— Então, inté. Faça o costumeiro bom serviço.

— Deixa comigo.

Desliguei o computador sentindo a alma leve, intensa sensação de paz e conforto. Admirador do profissionalismo e eficiência da minha parceira, sabia que tudo ia dar certo. Será que a audiência vai ser boa?, eu me perguntava, sabendo que todos os contatos do infeliz seriam devidamente avisados do show de imagens que iriam desfrutar na Internet, bem como internautas de todos os rincões, inclusive de Bom Jesus.

Dito e feito: showzaço!

— E aí? — teclou minha doce colatinense no dia seguinte ao memorável acontecimento.

— Aquela calcinha que ele usou era um tanto minúscula, não acha? Moicano de calcinha… mais que exótico. Escatológico!

— Ele que escolheu. Inclusive a cor do batom vermelho-sangue, a cinta-liga e os sapatos de salto.

— Boa-noite cinderela como sempre?

— Produto novo. Hipnotiza de imediato e altera radicalmente a personalidade. E não permite que o cérebro registre nada do que se faz enquanto dura o efeito.

— Ele não vai se lembrar de nada?

— Só sentir as dores…, sabe…, lá… E que passou uma noite num motel com a mãe de uma adolescente que teve de viajar às pressas para visitar o pai que estava nas últimas devido a um acidente.

— Você é demais, linda. Obrigado.

— Fico ansiosamente no aguardo de minha retribuição.

— Tá legal. Vou caprichar nisso. Que tal na semana que vem?

— Vou te esperar. Comprei um conjunto de lingerie que vai te deixar louco.

No outro dia vi Catherine e Tárin. Nem parecia que uma tragédia havia se abatido sobre elas. Não tocamos mais no assunto, era como se nada houvesse acontecido de anormal. Apenas uma observação de Catherine, que me fez abrir um largo sorriso:

— Aquele pepino era de Itu? — perguntou com uma sonora gargalhada, acrescentando: — como pôde caber?

— O vagabundo deu sorte. Minha prestadora de serviço não achou aipim na feira.

Publicado em julho/2011

Assassino em Bom Jesus

Estava um calor de lascar em Bom Jesus do Itabapoana. A temperatura naquele dia devia ter chegado, brincando, aos 42 graus, e mesmo àquela hora, já no lusco-fusco de fim de tarde, ainda beirava os 40. Esta característica de lugar quente, abafado, seja talvez uma das razões da cidade ter tantos bares, uma infinidade. Escolhi, portanto, com facilidade um deles, localizado próximo à praça principal a fim de me aliviar da sede. Chegando ao balcão, puxei para o canto um daqueles tamboretões que me fazem sentir um certo complexo de superioridade, deixei a sacola de supermercado que carregava encostada num canto escolhido estrategicamente, de forma que eu pudesse vigiá-la todo o tempo e pedi ao balconista uma cerveja:

— Estupidamente gelada, recomendei.

Sorvi o primeiro copo de uma só talagada, experimentando com raro prazer a sensação do líquido gelado e o sabor da cevada mais perceptivo nos primeiros goles. O bar estava vazio e o balconista lia, com ar entediado, um exemplar da Revista Status. Tive a impressão de que ele não enxergava muito bem devido à proximidade da revista, quase colada ao rosto. Vez ou outra ele a abaixava, com indolência, dando uma olhadela de relance pelo ambiente.

Numa dessas olhadelas seu olhar se fixou com mais atenção na porta de entrada do estabelecimento e num gesto automático de curiosidade virei a cabeça para olhar também. Era outro freguês, certamente vitimado pela inclemência do calor, buscando amenizá-lo da mesma forma que eu. O sujeito era alto, forte, mais ou menos da minha estatura, 35/40 anos, relapso no trajar, mas o que mais me chamou a atenção era a aura de mistério a envolver aquela criatura. O olhar era frio e penetrante, incrivelmente alheio, e os olhos, pretos como o azeviche, se encontravam relegados ao recôndito das órbitas. Quando aquele sujeito taciturno puxou outro tamborete e se sentou ao meu lado senti um mau presságio, um certo desconforto espiritual, não sei bem. Um fato curioso chamou ainda mais minha atenção: coincidentemente ele também portava uma sacola do mesmo supermercado, incrivelmente parecida em tamanho, formato e peso com a que eu portava. Ele a descansou no chão, a uma pequena distância da minha e com uma voz rouca, forte, absolutamente impessoal e autoritária, ordenou:

— Um uísque. Duplo. Sem gelo.

O balconista, que nesta altura havia transformado o tédio em profundo respeito e atenção, perguntou timidamente:

— Só tem Old Eight, serve?

Ele não se dignou responder. Fez um rápido aceno de positivo, atendido de imediato pelo transido comerciante, que achou prudente caprichar no “choro”, quase enchendo um copo americano. O homem virou tudo num só trago, o bocado que restou na boca ele gargarejou como se estivesse a limpar os dentes e ordenou novamente:

— Outro.

O segundo copo foi esvaziado com mais parcimônia. De soslaio eu observava o estranho, o suor agora mais abundante pelo início do efeito do álcool escorria feito uma fina cascata e empapava suas vestes rotas, amarfanhadas. Talvez por causa do uísque que bebia gulosamente ele começou a se metamorfosear de sua quietude, virou-se para mim e cravou o olhar perscrutador:

— O que você acha daquele cara que come as vadias e guarda os peitões de relíquia?

Essa pergunta incrível, seca e direta, feita com uma voz tão sinistra me causou calafrios. Difícil descrever o que senti no momento, mas controlei meu desconcerto e me ative nos fatos que originaram aquela pergunta: estava havendo na região uma onda de cruéis assassinatos de mulheres por um maníaco, que as seviciava e, com perícia, secionava seus seios, provavelmente para os colecionar. A histeria era geral; o assunto, predominante. A polícia não conseguia pistas do assassino. Buscas e averiguações se mostravam infrutíferas. Hoje mesmo mais uma vítima foi descoberta aqui por perto. Encarei com certo esforço a lúgubre figura, evitando críticas contundentes:

— O cara é hábil, inteligente, sagaz. Mas ele devia seguir o conselho do Maluf, “estupra, mas não mata”´, respondi constrangido, envergonhado do machismo da expressão, mas ciente de ser a resposta mais apropriada naquele tenso instante.

— Aí é que está, retrucou ele. — O melhor deve ser exatamente contemplar o pavor da morte, atingir o paroxismo do êxtase numa transa alucinante que somente um corpo em agonia pode proporcionar — falava pausadamente como que degustando com prazer cada palavra. À medida que ia falando seu rosto adquiria uma expressão mais assustadora, uma emanação demoníaca parecia fluir de suas feições. Já no quarto ou quinto copo de uísque ele se entusiasmava cada vez mais nas conjecturas macabras:

— É muito fácil fazer o convencional, disse com um desdém que evidenciava aversão pelas mulheres. — Elas só querem vadiar, só pensam ser modelos, atrizes. Bote uma roupa de marca, finja que é graúdo e trace elas fácil, fácil. Aí perde a graça, some o tesão. Elas é que obrigam, por fáceis e vulgares, a que o cara busque emoções mais consistentes, mais compensadoras, está me entendendo?, tentava ser explícito em seus conceitos doentios.

Estimulado pelo efeito da bebida o homem demonstrava identificação com o maníaco num crescendo assustador. Os feitos do assassino eram minuciosamente relembrados e glorificados, mas agora eu não mais o ouvia, desviado que fui em minha atenção pelo filete de um líquido vermelho e grosso que escorria debaixo da minha sacola do supermercado. Que diabos, pensei. Só me faltava a porcaria da sacola vazar! Minha preocupação aumentou, quase entrei em pânico quando ouvi barulho de sirenes ao longe. Era a polícia! Mas num átimo de segundo logrei um feito sensacional que aliviou por completo minha tensão. E, por coincidência, ao ouvir o barulho das sirenes o estranho se levantou meio grogue, pagou a conta, pegou sua sacola e foi embora com passos apressados.

Estava eu agora mais à vontade sem aquela companhia indesejável. Pedi outra gelada e fiquei matutando sobre aquele homem assustador. Difícil entender como pôde se abrir comigo daquele jeito, como pôde falar daquela forma com um estranho. O barulho agora bem próximo me tirou da abstração. Várias viaturas numa balbúrdia ensurdecedora de buzinas misturadas com rangidos de pneus e o estardalhaço das sirenes pararam defronte ao bar. Um bolo espesso de policiais se dividiu em várias direções. Um oficial entrou esbaforido e com o peito arfante, perguntou:

— Alguém viu um homem alto e forte com uma sacola de supermercado por aqui? É o maníaco — explicou a uma cada vez maior plateia de curiosos. — Uma testemunha o viu sair sorrateiramente do local onde assassinou a moça de hoje, completou, para estupefação geral.

— Eu vi, respondi prontamente. Ou melhor, nós vimos, afirmei olhando para o balconista, que assentiu com a cabeça.

— Onde, onde?

— Estava aqui agorinha, tomando uísque. E pelo papo dele não tenho dúvida que é o maníaco, afirmei com satisfação.

O oficial saiu em disparada, as viaturas iniciaram de novo o ritual barulhento e confuso. Saí também em seguida. Precisava de um banho para relaxar, o dia havia sido frenético. Entrei no meu carro e tomei a direção de Bom Jesus do Norte, lugarzinho acolhedor que eu escolhi para passar este dia memorável. Quando acabo de atravessar a ponte vejo um rebuliço nas imediações da pracinha principal, chamada Astolpho Lobo. Parei atrás da Igreja e discretamente segui na direção do tumulto. Guardei uma distância prudente do epicentro da confusão, firmei o olhar e vi o cara dos uísques sendo algemado e sua sacola passada de mão em mão pelos policiais. Em todos, um misto de pavor e nojo pelo que viam.

Lembrei-me da outra sacola e senti curiosidade de conhecer seu conteúdo, o que faria logo após retornar ao carro. Não contive um sorriso irônico de triunfo, de admiração própria pela minha agilidade de movimentos e rapidez de raciocínio.

— Que otário, balbuciei escarnecendo do infeliz. — Estava tão bêbado que nem percebeu quando troquei as sacolas…

Publicado em setembro/1998

As formigas e o verme

Ele chegou com ar preocupantemente grave, olhos baixos e um tremor nos lábios denotando forte emoção. Mais próximo de mim levantou em súplica os olhos embaçados pela idade:

— Por favor. Ajude minha neta.

— Hein?

— Ela está no chão da cozinha se esvaindo em sangue.

Não podia perder tempo com explicações. Saí com o velho puxando-o pelas mãos o mais depressa que seus passos curtos podiam por uma viela de São José do Calçado. Subimos a rampa que dava acesso à residência dois quarteirões depois do meu, onde moravam ele, a filha e a neta de 11 anos que fazia os trabalhos da casa enquanto a mãe trabalhava como doméstica em Bom Jesus. Na cozinha, uma cena dantesca: a criança raquítica, que aparentava menos idade da que realmente tinha, no chão, em posição fetal, mãos em concha nos genitais ensopados de sangue, gemendo, olhos vítreos de pavor fitando o nada. Recuperei-me do choque e imediatamente liguei para o hospital. Já na ambulância, o diagnóstico: estupro.

Desnecessárias as considerações sobre a selvageria do crime e dos traumas psicológicos da vítima. Um homem corpulento, foi só o que a criança conseguiu identificar, com cerca de 30 anos, bafo insuportável de cerveja. Pegou-a de surpresa quando o avô jogava o baralho rotineiro na praça próxima para matar o tempo da aposentadoria. Tapou-lhe a boca, ameaçou-a. Grandessíssimo covarde!

Ah, leitores, deixem-me apresentar: sou Gentil dos Anjos Flores da Purificação, 37 anos. De vez em quando apareço por aqui com esse pseudônimo consoante minha personalidade dócil. Sim, dócil. Sou um sujeito amistoso, possuo instrução superior, adoro minha família. Tenho muitos amigos, vou à missa todos os domingos com minha mulher e o casal de filhos, uma menina com 12 e um rapaz com 14. Mas vejam este emaranhado de incongruências que é a personalidade humana.

Minha cidade é pequena, próxima de Bom Jesus. Todos conhecem todos. Aos domingos costumamos bater uma bola no campinho mantido pela prefeitura perto de onde moro. Num desses domingos, achei que o Pacheco estava meio doidão; chegou a me dar uma canelada com seu corpanzil. Doeu pra burro. Ao se desculpar, um bafo rançoso de cachaça provavelmente misturada com cerveja e algum tira-gosto acebolado. Cruz credo! Depois do jogo, como costumávamos fazer, paramos no boteco do Ranulfo. Uns seis ou sete de nós molhávamos a conversa sobre a roubalheira no governo Lula da Silva, prometendo que por nós ele voltaria para Garanhuns e de lá jamais sairia.

De repente passou uma mocinha de uns 15 anos e percebi que o Pacheco a fitava com um olhar estranho. Depois de várias cervejas e algumas purinhas para complementar, o Pacheco, que já estava meio chumbado, chegou a um adiantado estado etílico — a senha para que meus amigos se despedissem. Mas eu e ele ficamos para uma saideira proposta por mim. Dado o seu estado, foi fácil disfarçar que eu também bebia com a mesma sede.

— Gosta de meninas novinhas, Pacheco?, perguntei, de chofre.

— Ahnn?, arregalou os olhos.

— São bonitinhas em sua inocência, concorda?

— Que conversa é essa, Gentil?, falava como um autêntico bêbado que estava.

— Pode se abrir comigo, Pacheco, temos as mesmas preferências.

— Para com isso, disse, sem muita convicção.

— Vai dizer que não…, eu insistia, não deixando seu copo esvaziar.

— Ah, Gentil. Isso é chave de cadeia…

— Pô, cara. Não confia em mim? Pode se abrir. Sou seu amigo e gostamos do fruto proibido. Não é legal ter alguém com quem compartilhar as mesmas predileções?

O brutamontes fitou-me ainda meio desconfiado:

— Não sabia disso. Está falando sério?

Forcei uma expressão lasciva em resposta, olhar contemplativo que rompeu a última fronteira de sua sobriedade. Ele grunhiu:

— De 10 a 15.

— Como?

— Depois de 15, não gosto.

— Ah, seu safardana, que coincidência. E prefiro pegar elas de surpresa.

Ele não resistiu, se abriu totalmente, escancarou.

— Então sê também gosta, né? O que você diz pra elas não gritarem?

— Conta você primeiro.

— Simples. Tapo a boca delas, ha, ha, ha.

— Aquela de 11 foi você, Pacheco?

— A safada lutou muito. Mas depois sei que gostou, igual as outras. Peguei ela por trás, nem me viu.

Vontade de triturar o vagabundo ali mesmo. Mas me contive, levaria o planejamento adiante.

— Pacheco, que tal se nós…, cochichei no seu ouvido um harém imaginário cerca de 10 quilômetros dali.

Topou na hora, como que se refazendo da bebedeira, num esgar horrível de perversão. Pagamos o restante da conta e entramos no meu carro. Já estava escurecendo, e a pretexto de procurar alguma coisa, abri o porta-luvas. Discretamente acariciei meu trezoitão, assegurando-me de que não o esquecera. Numa estradinha de chão, depois de rodar uns seis quilômetros, já noite, parei para “urinar”. O miserável também desceu, sem disfarçar o frenesi pela festa que julgava próxima. Abri o porta-malas e peguei as algemas que havia comprado numa ocasião num brechó no Rio de Janeiro. Peguei também a lanterna. Dei a volta e entrei pela porta do carona, peguei o 38 e, por trás do desgraçado, apontei para sua nuca.

— Nem um pio. Aqui tem muitos urubus doidos por uma farra.

— Mas…

Dei-lhe uma coronhada para ilustrar que falava sério, com força calculada para não desacordar aquela imundície.

— Vamos conversar mais um pouco sobre menininhas, disse, colocando-lhe as algemas.

Manietei-o com a fita crepe que também carregava no porta-luvas, dando muitas voltas. Quase não pude controlar a náusea por aquele verme covarde, com os olhos saltando das órbitas pela estupefação, em indescritível pavor, ao contrário do miserável estuprador cheio de si, arrogante ao seviciar suas vítimas. Amordacei-o porque já estava perdendo a paciência com suas súplicas a Deus e a todos os santos. Derrubei-o para que ele pudesse passar de gatinhas, apoiado nos cotovelos, por baixo da cerca de arame farpado. Já em pé, fui empurrando-o com o cano da arma nas suas costas até uma pequena mata no meio do pasto, a uns 800 metros da estradinha, onde os pouquíssimos passantes, quase nenhuns àquela hora não nos surpreendessem.

Tudo se passava na minha cabeça enraivecida: o drama daquela criança inocente, frágil, marcada para sempre pelo desatino de um brutamontes filho de uma que ronca e fuça; minha própria filha, linda, desabrochando para a vida sem a percepção do que há de ruim neste mundo. Filha a quem dou minha própria vida, se necessário. Entrando na mata, ordenei que parasse. Minha intenção era matar o desgraçado depois de fazê-lo sofrer, mas ainda não tinha ideia como. Clareando o chão com a lanterna, vi um grande formigueiro, daquelas formigas pretas que mais parecem piranhas terrestres, tal a voracidade com que mordem. Aí me bateu uma ideia perversa. Desabotoei enojado sua calça e arriei sua cueca sórdida. Calculei mentalmente as distâncias em relação ao tamanho do infeliz e finquei três pedaços de pau no solo fofo pelas chuvas que caíam há uma semana, com a ajuda de uma pedra, dispondo os paus como os vértices de um triângulo. Obrigueio-o a se sentar e amarrei firmemente com a fita seus pés em dois dos paus, de modo que suas pernas formassem um V. No outro pau, coloquei seus braços algemados e igualmente os amarrei fortemente. Pronto. Ele estava sentado, nu, em cima do formigueiro, imobilizado.

Não quis ficar olhando o trabalho das formigas. Fui embora e programei o celular para me acordar às 3 da madrugada. Quando voltei, a lanterna me apontou uma cena macabra: seu pênis e testículos haviam se transformado numa pasta liquefeita. O semblante do infeliz não era bonito de ver. Falei ao seu ouvido:

— É bom estuprar menininhas, seu bastardo? Ato contínuo, aliviei seu sofrimento com um balaço na nuca.

No outro dia, a cidade em polvorosa. O velho foi até minha casa perguntar se eu sabia o que havia acontecido. Pisquei um olho e disse:

— Presente meu para sua netinha.

Em seguida fui prestar contas à Justiça. Contei tudo. E deste catre onde pago a dívida com a sociedade, e de onde escrevo estas notas, nada é mais confortante que o olhar de ternura daquele velho que vem me ver todos os dias.

Publicado em outubro/2006

Que falta de sorte!

“MACACO, 66”

Esta frase do entregador do jogo do bicho dita ao dono do boteco estremeceu Fagundes. Sentiu um friozinho, uma doce sensação. Desde às 13h estava de plantão no botequim do Ranulfo aguardando o jogo das 14h, o Paratodos no linguajar dos “corretores zoológicos”. Deu macaco, 66, justamente a dezena que Fagundes havia jogado. “Só falta ter vindo com o milhar e a centena que usei para complementar o número de quatro dígitos, e aí ganho uma fortuna”, pensava Fagundes com as mãos trêmulas de emoção. Se viesse, estaria rico, pois investiu o que tinha (R$ 60, miséria pouca é bobagem) e ganharia quase R$ 100 mil. Preparou-se psicologicamente:

— E aí Ranulfo? Deu macaco em 66?

— É… Bicho manhoso. Como se pode ganhar nesta porcaria com tudo repetido? Veja só, deu tudo seis, 6666!

Fagundes emudeceu. Quase teve um colapso. Não conseguia se mexer, ficou momentaneamente estático, pasmo, mas logo se refez e desandou a gritar e a pular feito… macaco. Em fração de segundos sua personalidade se transformou. O que antes era um homem cabisbaixo, tenso e calado em razão das vicissitudes da vida, transfigurou-se num sujeito falastrão, com ares de importância jamais imaginada em sua simplória existência. Pagou rodadas e rodadas de cerveja para as pessoas que iam chegando atraídas por aquele barulho todo. Em questão de minutos uma pequena multidão se aglomerou no boteco.

Fagundes rezava, beijava com ardor o pedaço de papel que significava doravante sua carta de alforria daquela vida miserável. Agradecia a todos os santos por terem lhe proporcionado aquele sonho da noite anterior, no qual era chamado de besta pelos amigos porque não tomara nenhuma atitude ao surpreender sua mulher com o amante. Viciado no jogo do bicho e inteligente como julgava ser, Ranulfo não apostou no touro ou no burro, como era de esperar, mas lembrando-se que a Bíblia diz ter a besta o número 666, aproveitou o embalo e acresceu do milhar 6. “Não deu outra”, pensou. “Sou mesmo um sujeito inteligente!”

Começou a traçar planos. Iria na revenda comprar um carro, tomaria um banho de loja e depois formaria um estoque de Viagra. “Quero ver a cara daquela vadia quando me vir ao volante do meu carrão, com tudo em cima, e mais tarado que noivo em véspera de casamento. Ela vai se arrepender amargamente de ter me trocado por aquele safado do Juca Nastrão”, pensava com uma fisionomia perversa e vingativa.

Antes de ir à banca receber sua bolada, Fagundes, num surto de generosidade, resolveu dar R$ 100 a cada conhecido que estava no boteco. Um deles se prontificou em sacar da poupança de anos a fio uns R$ 3 mil para emprestar ao novo-rico (aquele papel escrito 6666 era uma garantia e tanto.) Dinheiro distribuído, Fagundes aconselhou o pessoal a arriscar no gato no jogo das 18h, já que ele, o sortudo, nascera em 1955, e 55 é o felino.

— Você não vai jogar mais?, alguém perguntou.

— Hoje não. Estou com pena do bicheiro, escarneceu Fagundes, dirigindo-se ao encontro do dito-cujo. Lá chegando, empertigou-se com ares de importância nunca dantes imaginada, sacou do bolso o papel miraculoso e disparou:

— E aí, meu chapa? Preparado pra desembolsar uns R$ 100 mil?

Imperturbável, o bicheiro retrucou:

— Claro, esse é o jogo mais honesto. Vale o escrito.

— Então, aqui está. Faça os cálculos.

— Hum…, deixa ver…, hum…, você ganharia R$ 80 mil no milhar, mais R$ 12 mil na centena e R$ 1,2 mil na dezena.

Fagundes esfregava as mãos, abstraído do terrível verbo no futuro do pretérito.

— Ganharia, enunciou o bicheiro com exagerada ênfase, para em seguida disparar a sentença cruel: — seu jogo correu às 10 e o macaco veio às 14h. Vale o escrito, lembra?

Doloroso demais! A desgraça só não foi maior porque deu o gato às 18h. Em 5555.

Publicado em outubro/1997

Encontro

Há tempos compus o soneto abaixo, “Trapaças da sorte.” Talvez por causa dele minha felicidade começou. Ou minha desdita, dependendo da interpretação de cada um. Alguém o leu, isto é certo; mais que leu: interpretou com inteligência e sensibilidade, tal como eu desejava.

“Na luta pela vida eu tirei partido,/
Do trabalho e forças de vencer, tamanhas,/
Que conquistei lauréis, glórias, façanhas,/
Deixando de joelhos o desânimo, vencido./

Fui audaz, forte, corajoso, destemido,/
Rompi barreiras, cumes e montanhas,/
Senti a dor procaz corroer-me as entranhas,/
Mas não quedei, de mim nenhum gemido./

Só nestas horas em que bate a solidão,/
E em que pese o que eu levo de roldão,/
Ignorando se o bem ou mal me quer./

Penso em Deus com uma única ressalva:/
Não confiscou minha fiel Estrela-Dalva,/
Mas não me deu o amor de uma mulher!/”

Certo dia eu atravessava a ponte em direção a Bom Jesus do Norte matutando sobre este soneto que, como psicanalisaria Humbert, Humbert (by Vladimir Nabokov) é, sem dúvida, a obra-prima de um louco: rimas áridas, rígidas, sombrias e sem perspectivas. Quando chego à Praça Astolpho Lobo a vejo, e num átimo meu coração ameaça saltar pela boca!

Lindíssima, sentada próxima a um dos quiosques, cabelos longos iguais aos que José de Alencar, ao descrever Iracema, dizia serem mais negros que a asa da graúna, levemente ondulados. Batom vermelho-sangue, olhos claros, claríssimos, pele sedosa e alva como a face da manhã, um conjunto de perfeição física que contrastava com a indumentária da cor dos cabelos, não estou certo se uma túnica ou um vestido.

Aproximadamente 30/35 anos, nessa fase da vida em que as auras de mistério das mulheres as tornam mais irresistíveis e envolventes. Olhei-a; olhou-me. Senti-a; sentiu-me. Olhares profundos, dos que perpassam a alma. Muito tempo, mais de meia hora, olhos nos olhos, quase sem piscarmos. Viajei; viajou. Adrenalina pura. Limalha e ímã. Mas como não há bem que sempre dure, desaponto o leitor e a leitora ávidos por finalmentes, de preferência cenas tórridas em meio a lençóis de seda. Recomponha essa cara de tarado/a, dê-se ao respeito! Um vácuo na memória é o que restou a partir daí, só readquirindo estabilidade em São José do Calçado, onde me encontrava noutra ocasião. E lá estava ela! Na praça. No banco. Em frente à igreja de São José. Olhou-me de soslaio, sabedora com antecipação de que ali estaria eu, extasiado, hipnotizado. Aproximei-me… Que diabo de vácuo!

Agora estamos em Apiacá, eu e ela, ela e eu. Adivinhem onde? Acertaram. E desta vez me lembro direitinho, inclusive da autoadmiração em perceber a ausência da minha timidez velha de guerra, daquela que fazia Pablo Neruda passar ao largo, distanciando-se das garotas, fingindo um desinteresse que estava longe de sentir, num excessivo acanhamento, num ensimesmamento prolongado que levam a um sofrimento inseparável, pois que a timidez, ainda segundo o poeta, é uma condição estranha da alma, uma categoria e uma dimensão que se abre para a solidão.

Mas eu dizia: falei com ela. Confiante, garboso, sentindo o germe da grandiloquência anos e anos represado:

— Bela manhã…

— Belíssima, ela respondeu com uma voz doce, terna, serena.

— Não já nos vimos em Bom Jesus, em Cal…

— Psst, cortou ela. — Não fale… — ordenou como se começasse a entoar uma melodia maviosa, baixinho como cantigas de ninar.

— Mas…

— Psst. Apenas sinta este momento.

— Claro, claro, balbuciei.

E ficamos nos olhando, nos admirando mutuamente, cada centímetro de nossos corpos perscrutados com a lupa de um arqueólogo que acaba de descobrir o mais fenomenal sítio arqueológico, com o frenesi dilacerante que impede seus dedos tocarem as raridades. Algum tempo depois, ela quebrou o silêncio:

— Serei tua. Pra todo o sempre. Prometo. De uma forma mágica, numa dimensão tão fantástica como requer nosso merecimento.

— Qual o seu nome, onde mora, por que… — uma cascata de perguntas ameaçava vir de minha mente aos borbotões, não tivesse ela ordenado outra vez:

— Tudo a seu tempo. Você terá todas as respostas, não se preocupe. Agora, faça o favor, vá. Eu o encontrarei em breve.

Um gesto tão carinhoso quanto vigoroso que ela fez me impediu de tocá-la. Ainda fiquei ali contemplando-a, com o peito transbordante daquele amor platônico avassalador, gemendo no íntimo por ter de me separar daquela mulher que se transformou como num passe de mágica em tudo o que para mim era mais sagrado, mais bonito, mais enternecedor desde os meus filhos.

Afastei-me relutantemente. Segui em direção à prefeitura de Apiacá quando comecei a ouvir um burburinho aflitivo. O conjunto de sons denotava ar grave, choros se misturavam a barulhos de passos apressados, ordens eram dadas, objetos removidos e manipulados freneticamente. Mas os sons foram se apagando gradualmente, e depois que se foram de vez, uma aura de bem-estar completa, total, se apoderou de mim.

E aqui estou, leitor, leitora, tendo suprimido, corado de vergonha, a ressalva a Deus no poema. Estou com ela, claro, fiel cumpridora de promessas, num lugar maravilhoso, divinal, onde receberemos vocês um dia com alegria e carinho.

Tudo a seu tempo.

Publicado em novembro/2006