Aqui eu guardo meus escritos.

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Fome

Balzac dizia: “Atrás de cada fortuna há um crime”.
Jornal Nacional, 24/11/97: um “concerto” tenebroso e horripilante de vozes infantis a interpretar uma partitura de notas dissonantes pelo flagelo da fome, um canto de choro funesto igual nos filmes de Boris Karloff. Na despensa (?), um pouco de farinha de mandioca e alguns gramas de açúcar, únicos ingredientes para alimentar quatro crianças na mais tenra idade, uma das quais, de colo.
O que poderia acrescentar a este texto para, objetivamente, contribuir para corrigir a infâmia?
Aceito sugestões.
Publicado em dezembro/1997

As águas vão rolar…

O Carnaval, desde que foi introduzido no Brasil em 1641, sempre foi uma festa alegre e descontraída e que pouco a pouco fora consolidando identidade única até se transformar no maior evento cultural brasileiro. Principalmente nas grandes cidades, porém, a rígida organização dos festejos, em especial a dos desfiles das grandes escolas de samba empanaram a naturalidade com que se brinca o tríduo de momo. Valoriza-se exageradamente hoje o luxo desregrado, os equipamentos sofisticados. Tudo rigorosamente cronometrado, mecanizado, burocratizado demais para um evento cuja essência seria a natural expansividade humana.

Impregnada de artificialismos e de mastodônticos interesses comerciais, a festa momesca despersonalizou-se, tornou-se inacessível para o povão até porque a mentalidade higt-tech foi aos poucos descaracterizando os blocos e desmotivando os foliões de rua com sua antiga irreverência e criatividade. Salvo nos estados do Nordeste, com uma política inteligente de preservação da cultura nativa (frevos e maracatus a cada ano mais animados e vibrantes), o Carnaval no Brasil não é mais o mesmo.

De todo modo, trata-se ainda de uma oportunidade que as pessoas têm de esquecerem um pouco seus problemas e angústias nos três dias de folia, vivendo em fantasia, tanto no sentido literal como no figurado, seus anseios de liberdade e alegria. Brincando moderadamente, sem excessos, a festa é profundamente saudável a corpo e mente, porque é a catarse para as mazelas da vida e dos relacionamentos humanos conturbados.

…garrafa cheia eu não quero ver sobrar…

Autor: José Henrique Vaillant – Publicado em fevereiro/1998

Uma cidadã admirável!

Zilda Arns Neumann, médica pediatra e sanitarista brasileira, fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa

Como certas pessoas conseguem nos comover! Domingo, 15/8, TV sintonizada no Faustão, a Dra. Zilda Arns na tela. Fausto Silva, apresentador que vive considerando muita gente paradigma de alguma coisa boa, acertou desta vez. O rechonchudo apresentador, pra variar, enaltecia a dignidade, a integridade, a seriedade, a generosidade, numa cascata de adjetivos que direciona a muitos, só que naquele instante a uma pessoa que de fato os merecem: Dra. Zilda Arns.

O frio terrível que eu estava sentindo aqui não impediu que meu coração se aquecesse de imediato, e uma instantânea sensação de energia se apoderou de mim. Emanava do aparelho de TV uma aura de integridade moral e de solidariedade humana tão fortes que verti uma lágrima, destinando-a mentalmente junto com um beijo ardoroso àquela face que expressa de forma tão doce e linda o que há de melhor e de mais edificante na nossa espécie.

A admiração que tenho por essa mulher não é só pelo que ela representa ou faz, mas é sobretudo pelo modo meigo de me mostrar que eu também poderia ter representado e feito o que não fiz; ela me diz com o olhar enternecido que não havia obrigatoriamente a necessidade de eu possuir grandeza de recursos materiais para doar algo ao próximo além de uma esmola aqui e acolá. Ela me lembrou, encantadoramente sorrateira, que aquela criança do Lar André Luiz, o velho abandonado no asilo ou o enfermo no São Vicente poderiam ter tido de mim um motivo a mais que justificasse suas existências, ainda que fosse um simples afago.

Não é demasiado tardio, como a danadinha da dona Zilda me mostrou tão docemente, porém, perceber que além do meu próprio umbigo há um concerto de aflições a me rodear, e que posso e devo colaborar para a afinação de notas tão dissonantes num país deitado eternamente no berço esplêndido das injustiças e iniquidades.

Publicado em agosto/2004

O que nos cabe nesse latifúndio? Ah, como eu queria ter um cartório pra chamar de meu!

Cartório é uma palavra que assusta os brasileiros. Tanto os cartórios no sentido literal quanto no figurativo. Cartório no sentido de corporativismo, dos agrupamentos de empresas, instituições setoriais soa depreciativo, algo prejudicial aos interesses da maioria. Já ouviram a expressão “cartorial”, ou “cartorialismo”?

Já cartório, na expressão pura, quem por aí nunca teve um arrepio, um friozinho na barriga quando alguma eventual obrigação tenha tido, de alguma forma, de ser intermediada por ele? Ai, que tristeza. Títulos no cartório, meu Deus, que pesadelo. Escrituras, ui, como é difícil ter um patrimônio fixo legalizado. E tem sido assim desde que esses estabelecimentos foram introduzidos na época das capitanias hereditárias pela monarquia portuguesa, que os davam a aristocratas lusos que se dispusessem a povoar na terra então recém descoberta.

Aqui especializaram-se em ganhar com as exigências burocráticas e tem sido assim por todo o sempre, esconjuro! O monstro foi se especializando tanto na forma de ganhar sem investir que de suas entranhas estufadas irromperam várias cabeças. Foram gradualmente surgindo então o do registro civil, exclusivo para certificar nascimentos, mortes, casamentos e separações (em países, digamos, mais modernos e mais justos estas tarefas cabem às prefeituras); o de notas, que oficializa assinaturas e “dá fé” a cópias de documentos originais; o de protestos, pelo qual têm de passar todos os títulos não pagos; o de títulos e documentos, cuja função é registrar os ditos-cujos; o de registro de imóveis, quando o cartório cobra um percentual sobre o valor de uma negociação imobiliária pela qual em nada ajudou, apenas para torná-la oficial.

Cartórios, como as capitanias hereditárias, eram passados de pai para filho. A Constituição de 1998 tentou pôr um fim a esse anacronismo, a essa verdadeira excrescência do atraso. Mas ficou assim, assim, já que o sistema atual de concessão prediz o concurso, porém um tanto subjetivo, com provas orais que restringem quem não possua conhecimentos forenses. Quer dizer, tentou-se adaptar os cartórios à onda de modernidade, mas de modo a fazer a omelete sem quebrar os ovos. O resultado é que praticamente ficou tudo como dantes no quartel de Abrantes: ainda se mantêm a mesma estrutura de décadas atrás, com serviços caríssimos, sem concorrentes e imunes à lei mais temida na contemporaneidade, que é a do mercado. Não por acaso, me recordo de ter lido não sei se em 2000 ou em 2001 que, dos 10 maiores pagadores de Imposto de Renda do país, quatro eram donos de cartórios.

De sorte que, ao angustiado usuário dos serviços cartoriais, a parte que nos cabe nesse latifúndio é, repetindo o poeta, “curtir sem queixa o mal que nos crucia”, porque lutar contra este lobby poderosíssimo, quem há de?

Publicado em abril 2002

Peregrino da cultura

Pedro Teixeira está sempre em cima do lance. Não deixa passar “de passagem” nenhuma bola, digo, nenhum detalhe importante ao seu rico arsenal de causos e casos que povoaram a imaginação de sua gente ou se fizeram reais na sua querida São José do Calçado, fonte suprema de inspiração e energia motora da sua intensa atividade intelectual. Pedro é um “pelinha”, no bom sentido. Rato de biblioteca, traça de papeis amarelados em qualquer lugar que fareja, é também um espião disfarçado nas rodas de papo à espreita de uma palavra, uma frase, uma oração que capta num relance com terceiras intenções de ordená-las magistralmente, transformando-as em estímulo à nostalgia e acessório do imaginário coletivo.

Virtuose no estilo de cirúrgica precisão — nem prolixo, nem lacônico — Pedro garimpa incansavelmente a informação bruta, rudimentar, e a transforma numa joia. Este último “Nossa terra, nossa gente, nossa história”, obra de grande valor documental demonstra a versatilidade do autor que incursiona com igual desenvoltura do pitoresco ao intrigante, do leniente ao perturbador, em situações reais ou imaginárias, mas sempre dissecadoras da alma e dos fatos de antanho.

Com Pedro Teixeira na área São José do Calçado não sofre o gol do ostracismo cultural. Ele, no ataque, é um azougue contra a meta do esquecimento.

Com mil fardões!

Publicado em abril/1999