Aqui eu guardo meus escritos.

Obrigado pela visita.

O que nos cabe nesse latifúndio? Ah, como eu queria ter um cartório pra chamar de meu!

Cartório é uma palavra que assusta os brasileiros. Tanto os cartórios no sentido literal quanto no figurativo. Cartório no sentido de corporativismo, dos agrupamentos de empresas, instituições setoriais soa depreciativo, algo prejudicial aos interesses da maioria. Já ouviram a expressão “cartorial”, ou “cartorialismo”?

Já cartório, na expressão pura, quem por aí nunca teve um arrepio, um friozinho na barriga quando alguma eventual obrigação tenha tido, de alguma forma, de ser intermediada por ele? Ai, que tristeza. Títulos no cartório, meu Deus, que pesadelo. Escrituras, ui, como é difícil ter um patrimônio fixo legalizado. E tem sido assim desde que esses estabelecimentos foram introduzidos na época das capitanias hereditárias pela monarquia portuguesa, que os davam a aristocratas lusos que se dispusessem a povoar na terra então recém descoberta.

Aqui especializaram-se em ganhar com as exigências burocráticas e tem sido assim por todo o sempre, esconjuro! O monstro foi se especializando tanto na forma de ganhar sem investir que de suas entranhas estufadas irromperam várias cabeças. Foram gradualmente surgindo então o do registro civil, exclusivo para certificar nascimentos, mortes, casamentos e separações (em países, digamos, mais modernos e mais justos estas tarefas cabem às prefeituras); o de notas, que oficializa assinaturas e “dá fé” a cópias de documentos originais; o de protestos, pelo qual têm de passar todos os títulos não pagos; o de títulos e documentos, cuja função é registrar os ditos-cujos; o de registro de imóveis, quando o cartório cobra um percentual sobre o valor de uma negociação imobiliária pela qual em nada ajudou, apenas para torná-la oficial.

Cartórios, como as capitanias hereditárias, eram passados de pai para filho. A Constituição de 1998 tentou pôr um fim a esse anacronismo, a essa verdadeira excrescência do atraso. Mas ficou assim, assim, já que o sistema atual de concessão prediz o concurso, porém um tanto subjetivo, com provas orais que restringem quem não possua conhecimentos forenses. Quer dizer, tentou-se adaptar os cartórios à onda de modernidade, mas de modo a fazer a omelete sem quebrar os ovos. O resultado é que praticamente ficou tudo como dantes no quartel de Abrantes: ainda se mantêm a mesma estrutura de décadas atrás, com serviços caríssimos, sem concorrentes e imunes à lei mais temida na contemporaneidade, que é a do mercado. Não por acaso, me recordo de ter lido não sei se em 2000 ou em 2001 que, dos 10 maiores pagadores de Imposto de Renda do país, quatro eram donos de cartórios.

De sorte que, ao angustiado usuário dos serviços cartoriais, a parte que nos cabe nesse latifúndio é, repetindo o poeta, “curtir sem queixa o mal que nos crucia”, porque lutar contra este lobby poderosíssimo, quem há de?

Publicado em abril 2002

Peregrino da cultura

Pedro Teixeira está sempre em cima do lance. Não deixa passar “de passagem” nenhuma bola, digo, nenhum detalhe importante ao seu rico arsenal de causos e casos que povoaram a imaginação de sua gente ou se fizeram reais na sua querida São José do Calçado, fonte suprema de inspiração e energia motora da sua intensa atividade intelectual. Pedro é um “pelinha”, no bom sentido. Rato de biblioteca, traça de papeis amarelados em qualquer lugar que fareja, é também um espião disfarçado nas rodas de papo à espreita de uma palavra, uma frase, uma oração que capta num relance com terceiras intenções de ordená-las magistralmente, transformando-as em estímulo à nostalgia e acessório do imaginário coletivo.

Virtuose no estilo de cirúrgica precisão — nem prolixo, nem lacônico — Pedro garimpa incansavelmente a informação bruta, rudimentar, e a transforma numa joia. Este último “Nossa terra, nossa gente, nossa história”, obra de grande valor documental demonstra a versatilidade do autor que incursiona com igual desenvoltura do pitoresco ao intrigante, do leniente ao perturbador, em situações reais ou imaginárias, mas sempre dissecadoras da alma e dos fatos de antanho.

Com Pedro Teixeira na área São José do Calçado não sofre o gol do ostracismo cultural. Ele, no ataque, é um azougue contra a meta do esquecimento.

Com mil fardões!

Publicado em abril/1999

Bom Jesus do Norte: turismo é investir na decadência e, quem sabe, no óbito

Deve-se investir dinheiro (nem tanto, nem tanto) para substituir as placas de boas-vindas, investindo também o básico do nosso idioma velho de guerra. Seja “bem-vindo” deveria ser grafado assim, com traço-de-união que a Nova Ortografia não excluíra dos dicionários. Desde que as placas foram introduzidas nos três acessos a Bom Jesus do Norte/ES, se não me engano no ano da graça de Nosso Senhor de 1997, venho encafifado com esse erro ortográfico crasso, e também com a expressão “Turismo é investir na qualidade de vida”, que a rigor não quer dizer absolutamente nada. Tá bom, tá bom, todo mundo entende a mensagem, isso é que importa, a publicidade desfruta de certa liberalidade (tal qual os poetas), a cerveja que desce redondo, em vez de redonda, etc. e tal, e eu não chegaria a ponto de dizer de meu vizinho que ´a gente é amiga´, como a língua portuguesa culta exige porque o substantivo “gente” é feminino.

O português é mesmo peralta. Eu e pertinho de 100% dos bom-jesuenses, ouso afirmar (inclusive intelectos privilegiados como os do como Padre Mello, Delton de Mattos, Romeu Couto e muita gente boa mais), escrevíamos “bonjesuense” sem o bendito tracinho que deve unir “bom” a “jesuense”, como ensinam os mestres Caldas Aulete, Antônio Houaiss, Aurélio Buarque de Holanda e outros lexicógrafos — o álibi de meus compatriotas de tempos idos é se a grafia nem sempre foi hifenizada. Quanto ao slogan, quisera ter o dom da síntese de Dalton Trevisan para sugerir uma ´portuguesmente´ correta para “é mais prioritário investir na qualidade de vida do que no impulsionamento do turismo”.

Por tudo isso é que não reclamei até agora, julgar-me-iam (hum!) esnobe, superficial, presunçoso, além de me arriscar ser processado por preconceito linguístico. E que utilidade teria além de desagravar as normas da língua-mater, cruelmente esculachada, humilhada, depreciada atualmente? Mas a natureza e o descaso se uniram para me dar um pretexto, digamos, relevante para criticar as indefectíveis placas. Aquela que nos brinda com esfuziantes ferrugem, desalinho, amassos e erro gramatical, localizada na chegada, sentido Apiacá, é também uma ameaça à vida: as duas hastes de sustentação inferiores estão totalmente destruídas pela corrosão. Embaixo do perigo há um abrigo de passageiros, e estes correm o risco da ´desqualidade´ de vida, podendo vir a inspirar o slogan “Turismo é investir na decadência e, quem sabe, no óbito!”

Publicado em março/2012

Sou cronista, pedreiro e pintor. Sempre, sempre, amador

— Paulinho, traz a sexta-feira 13.

— Aqui está.

— Agora pegue a dama e vá dançar um pouco naquele piso.

Achei tão engraçado este diálogo entre um pedreiro e seu ajudante que passei a prestar mais atenção no linguajar desses trabalhadores. Fui me tornando mais íntimo de sua terminologia e de suas agruras a partir do momento em que passei a pôr literalmente as mãos na massa quando da necessidade de fazer os reparos e as manutenções do meu lar doce lar. Explico: sendo de boa monta as referidas necessidades e inversamente proporcionais ao tamanho das minhas finanças, resolvi assimilar um pouco a lida com areia e cimento, com argamassa e revestimento, com prumo e enquadramento, para não fugir à rima. Minha casa, por meus próprios braços e mãos está se livrando paulatinamente da velha pecha de pobre e relaxada. Diria ela, enfatuada: “pobre, mas digna.”

Nesta altura o leitor e a leitora devem estar se perguntando: e eu com isso? Calma. Em troca de sua admiração ao meu talento multifacetado serei um adminículo (que contribui para) à sua cultura. Muita modéstia, liga não. Para começar, você sabe o que é embolsar uma parede? Errou. Introduzir uma parede no bolso só o King Kong talvez conseguisse se usasse roupas. Se alguém embolsar a sua, e ainda assim você pagar por isso, problema seu. Comigo a pessoa teria de realizar um desembolso se quisesse a minha parede. Se ele fosse emboçá-la, porém, eu quem o embolsaria. Sim. O que fazemos é emboçar, sem o L contido em ´polca´, um tipo de dança, mas que muitos entendem equivocadamente ser a fêmea do parafuso. Os que faço são emboços curvilíneos, ondulados, toques originados da inabilidade que pretendo o digníssimo admirador entender como um estilo neo-alguma-coisa, algo entre o barroco e o moderno.

Curiosidade: a palavra “pedreiro” é derivada do latim “petrarium”, relacionado a pedras, aprendo na Internet. A pessoa que levantava paredes com pedras ou outro material era conhecido também como alvanel, ou alvenel, em algumas culturas da antiguidade. Daí a tal alvenaria. E quem estranhar tamanho contraste entre escrever umas mal-traçadas e entijolar, lembro que Agenor de Oliveira foi servente de pedreiro. A pequena, ínfima diferença é que ele começou servente e terminou Cartola, o gênio da música que produziu o hino “As rosas não falam”.

Fichinha, comparado a mim, eh, eh, eh.

P.S. Sexta-feira 13 é marreta, daquelas de uns 10 kg, que aconselho a você não se interessar por ela. E se gosta de dançar agarradinho ou agarradinha sugiro enfaticamente procurar uma dama de carne e osso. A dos pedreiros costuma ser um pedaço de madeira como tocos gorduchos de grandes árvores com dois braços, digo, dois cabos pregados que serve para compactar o solo para receber o contrapiso. Dependendo do tempo da dança os braços humanos, digo, os cabos colados ao corpo costumam terminar pesando mais que a dama.

Publicado em janeiro/2011

O tempo vagaroso é o mesmo que corre. E livrai-me das festas, amém

“O tempo é um grande mestre; tem porém o defeito de matar os seus discípulos.” – Hector Berlioz

Meu caçula de 14 anos resolveu que é hora de pilotar motocicleta. Aquela pressão velha conhecida de pais de adolescentes, tipo todo mundo anda, só ali na pracinha, não vou correr, nem cair, nem ir longe, etc.

— Quando você completar 18 anos eu deixo, retruquei para sobrancelhas quase formando duas letras U invertidas. E completei, a despeito das sobrancelhas: — porque então você estará habilitado e poderá sair por aí legalmente sem que eu me preocupe de um policial bater em minha porta a qualquer momento com as sobrancelhas mais fechadas que as suas querendo me enquadrar por desrespeito à lei.

— Mas, pai, quatro anos é muito tempo. Vai custar a passar.

Tudo é tão enfadonho… Todo homem, ao nascer, tem a consciência da imortalidade. Daí a morte ser tão injusta, dizia Carlito Maia. Meu filho, com a consciência da imortalidade, julga que quatro anos passam devagar, quase parando. Neste momento fico pensando que deveriam desenvolver algum medicamento persuasório para se aplicar na veia e meu filho percebesse que quatro anos passam depressa até demais.

Relaxem, porém. Não vou filosofar sobre o tempo. Está chegando o Natal. Mais um, a totalizar 56 na minha vida que, agora, vai ganhando velocidade vertiginosa em contraste com a do meu filho, a trafegar como uma tartaruga míope. O que acho das festas? A cada ano me distancio do chamado espírito do Natal e mais me entediam as comemorações de fim de ano. Não vejo o que comemorar. Para começar, todos sabem, mas poucos se lembram do motivo principal das pomposas solenidades natalinas. Entendo os festejos principalmente num mundo de alucinações e delírios como o nosso não como uma singeleza ao Menino Deus, mas uma afronta, uma heresia, uma blasfêmia.

Mesmo com Sua infinita misericórdia e tolerância Ele há de repudiar os convescotes de dissimulação e desfaçatez onde o que mais conta são os prazeres mundanos — em especial os do ócio e da gula — e a exacerbação do egoísmo e das práticas hedonistas, já disse isso em outro texto. Congratulações às exceções, aos homens e às mulheres que não se deixaram cooptar pelo materialismo insano nem vacilaram em sua fé. Formam um seleto clube do qual também não tenho permissão para frequentar.

Por outro lado, essa constatação me traz certo alento. Pode estar nela a espoleta deflagradora de mudança de rumo em busca de uma vereda mais segura e livre das preocupações com a inclemência e a inexorabilidade do tempo.

Publicado em dezembro/2010