Aqui eu guardo meus escritos.

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Pra não dizer que não falei de flores

A reportagem que fiz em fevereiro último abordando o terrível drama da menina bom-jesuense-do-norte, Luma Grazieli, de nove anos — gravíssimo acidente — redundou em extraordinária manifestação de calor humano a que pude vivenciar nestes meus quase 52 anos de vida em nossas paragens. A exaltação coletiva de amor ao próximo, a solidariedade dos corações generosos foi deveras comovente, consolidando em minha alma a percepção de que nós brasileiros somos mesmo um povo solícito, sensível, capaz de dividir o sofrimento alheio mesmo em meio aos ásperos problemas da vida, na crispação de dias de luta árdua e de angústia cotidianas.

A emoção dobrou e venceu quantos conheceram detalhadamente a sentença cruel (paraplegia) dada à criança no alvorecer de sua vida. Somente muita fé impede confrontar o senso de justiça divina, cujas razões tiveram o agravo da manutenção de parte da consciência da garotinha; parece entender o que se passa com ela. Essa consciência, entretanto, tem o seu lado bom, e aí talvez seja a coberta conforme o frio que, dizem, Deus sempre dá. O coraçãozinho da Luma recebe doses transbordantes de afeto, de carinho, de amor, e por certo ela pode perceber e desfrutar disso. Qual não deve ser sua íntima alegria com tantos papais e mamães, e titias e titios, e vovôs e vovós, e irmãos e irmãs que ganhou repentinamente!

Quando o jornal evaporou nem bem começou a ser distribuído, eu sabia que algo espetacular ocorreria, mas confesso ter me surpreendido com a magnificência da reação das pessoas. Não vem ao caso enumerar benefícios materiais profusos que Luma ganhou para sua recuperação. Os princípios que levaram a eles, sim, são prazerosos de comentar. Creiam que aprendi ao longo de minha luta com estas teclas que não se fortalece a verdade com o exagero, mas a mobilização das pessoas em prol de Luma foi e está sendo inesquecível. Eu disse a seus pais, depois dessa maravilhosa manifestação de apreço e solidariedade, que o bom-jesuense, o calçadense, o apiacaense e gente até de outras plagas haverão de receber as palavras de gratidão, um dia, da boca da própria Luma. E ela haverá de lhes dizer do mesmo sentimento que enchem os corações dos seus pais: vale a pena viver quando se tem amigos assim!

Publicado em março/2006

Expulso das casas populares, Bonjesino elogia os políticos

— É chefia, viver de aluguel não é fácil, disse-me dia destes bonjesino, o amigo que já apresentei a vocês, o homem mais ingênuo na face da Terra, de boa índole, cuja crença nos políticos é diretamente proporcional ao seu corpanzil de paquiderme.

— Ahn?

— Eu disse que viver de aluguel não é bolinho não. Todo mês, chefia, separo RS 150 pra dona do muquifo. Mas vou sair de lá.

— Vai?

— Vou ganhar uma casa, exclamou o gigante, todo sorridente.

— A que te prometeram há 20 anos?

— Epa. Notei um tom irônico na sua voz, chefia. Não comece com as críticas, advertiu-me. E continuou: — aquela mesma. Não esquento a cabeça com a demora, porque sei que nossas autoridades públicas fazem de tudo pelo povo, se sacrificam por nós, coitadas. E se não me conseguiram uma casa até agora foi porque tiveram coisas mais relevantes a fazer em benefício da população e não sobrou dinheiro.

— Agora vai?, perguntei, tentando disfarçar a ironia.

— Anham. Agora não há dúvida. Eu até já tinha tomado posse da minha bela casa, lá pros arrabaldes na saída para o Barra Alegre, em Bom Jesus do Norte, pertinho do Pinicão da Cesan.

— Vamos por partes, interrompi. — 1) Pertinho do Pinicão com aquele odor agradabilíssimo que impregna corpo e alma, dia e noite, sete dias por semana? 2) Bela casa? 3) Não errou o tempo verbal “tinha tomado posse?”

Senti Bonjesino crispar-se, os olhos soltando centelhas de indignação, e antes de lançar pacotes de ofensas ao meu senso crítico balancei as mãos como a pedir um armistício antecipado, o aborto das nascedouras hostilidades, emendando: — Apenas responda.

Ele me encarou com desdém, e olhando para cima com a cara e os olhos enviesados, mentalizando pedido ao Pai para perdoar meus pecados, explicou com voz mansa, em tom professoral:

— Quando construíram o Pinicão no ano da graça de Nosso Senhor de 2000, chefia, disseram que o fedor ia durar uns três anos. Só porque até hoje a catinguinha persiste, já vem querer criticar? Você é capaz até de achar que a Cesan e a prefeitura pouco se lixaram para esse povaréu que vive ao redor do Pinicão, e disseram três anos só pra engambelar. Deu um respiro e continuou: — Nada disso. Apenas está demorando um pouquinho mais, homem impaciente e sem fé.

Julguei prudente me conter. Calei minha opinião de que aquilo vai feder por todo o sempre. Apenas o instiguei às demais respostas.

— Faltam a 2 e a 3.

— Bela casa, sim senhor — disse o colosso. — Espaçosa, arejada, bom acabamento. Tem até emboço. Quarto e sala, mas suficientes para mim, a patroa e os quatro filhos. É só arrastar, à noite, a mesa da cozinha pra fora, que dá pra todo mundo dormir esticado. E a parte três é que nos expulsaram.

— Expulsaram?

— Com Batalhão de Choque, cassetetes e tudo o mais.

— Como assim?

— Culpa nossa, chefia. Essa mania que temos de querer deixar de viver de aluguel a todo o custo.

— Continue…, demonstrei na voz ansiosa minha curiosidade.

— As casas estavam lá, só faltando dizer entrem. Então fizemos a vontade delas.

— Entraram à revelia…

— Entramos. Não tinha luz, nem água, nem nada. Mas viver…

— De aluguel?

— Não interrompe, chefia.

— Vá ao ponto Bonjesino. E não diga mais “viver de aluguel”. Quem faz isso são donos de imóveis. Diga viver pagando aluguel, ou viver para pagar aluguel.

— Você entendeu direito. Mania de ficar corrigindo os outros. Como eu ia dizendo, viver…, digo, pagar aluguel é uma tristeza. E muitos dos invasores nem aluguel podiam pagar. Ficavam de favor lá e cá, sem terem seu cantinho. Então, já viu, né? As casinhas para nós eram palácios.

— Mas não se pode desrespeitar as leis, e invasão é crime, ponderei.

— Somos uns desgraçados criminosos. Merecemos apodrecer na cadeia. Estou tão arrependido…, resmungou, fungando.

— Que é isso, Bonjesino? Também não é para dramatízar tanto…

— Quando penso que desapontei nossas autoridades, esses homens e mulheres que vivem dia e noite pensando apenas trabalhar por nós, pelo nosso bem-estar… Sinto-me desfalecer.

— Bobagem. O que eles têm de fazer é resolver o problema.

— Ah, mas vão. Não tenho a menor dúvida.

— Você disse burocracia, Bonjesino?

— Licença ambiental. As casas foram construídas sem licença.

— Como pode?

— É que estavam tão ansiosos para cuidar bem da população carente, que resolveram fazer as casas depressinha.

— E o que você pensa das autoridades que os tiraram de lá?

— Mais do que certas. Têm de fazer cumprir a lei.

— E das que fizeram as casas no vai-da-valsa?

— Também corretíssimas. Estavam querendo suprir as necessidades dos pobres, que muitas vezes não podem esperar tanto tempo por essa tal de licença.

— Então?

— Não já te disse, chefia, que os culpados somos nós? Vamos aguardar até quando Deus quiser. Eu mesmo, se esperei 20 anos, que custa esperar mais 20? Nossas autoridades sabem o que é melhor para nós.

Despedi-me do ciclope pensando cá com meus botões: fazer sem licença e retirar à força são atitudes igualmente censuráveis porque representam extremos. Por um lado, de inconsequência; por outro, de truculência. Pior para Bonjesino é que ambos os atores têm fortes argumentações para justificarem seus atos.

Moral da história: Bonjesino é que errou feio por ser tão impulsivo na busca febril de amenizar suas carências, sujeito pretensioso! Que seria dos que vivem de aluguel se não houvesse os que vivem de pagar?

Publicado em outubro/2010

À flor da pele

Um conhecido meu, sujeito parrudo beirando os 40, ignorantão, vive por aí a colecionar em seu malévolo arquivo mental as agruras humanas para comentá-las com pitadas generosas de ironia e sadismo em rodas de botequim. De mim, anda a falar aqui e acolá, bem sei:

— Sabe o Zêinrrique, aquele que gosta de escrever? (Imagino sua boca murchando propositalmente, tanto que os lados superiores do rosto chegam a tapar os olhos num trejeito sacana para denegrir a qualidade do que faço). Ele tem umas manchas estranhas nos braços e uns descascados nas mãos… Coisa horrível!

Dia desses vi o pelintra na outra calçada em direção oposta a mim. Tentei me desvencilhar olhando ao acaso uma vitrine. Em vão. Atravessou a rua apressado, quase levando uma cipoada bicicletal, vindo cheio de dentes em minha direção:

— Zêinrrique, meu chapa. Há quanto tempo. Também, você não sai do casulo…

— Sair, saio. Só o necessário. Sou meio caseiro.

— Anham! Caseiro, é? Nada disso. Você é um esnobe, um excêntrico.

— Se você acha…, repliquei, ansioso para finalizar o rápido encontro.

— Estou encafifado com essas manchas nos seus braços, Zêinrrique. Foi tombo? Caiu de alguma escada… Ah, já sei. Caiu de moto…

— Nada disso. São manchas involuntárias.

— Involuntárias? Tá vendo a excentricidade? Uns levam porrada de alguma coisa ou de alguém, mas as suas marcas são…, ai que coisa, in-vo-lun-tá-ri-as.

— Tenho doença de pele. Às vezes sai sangue dos meus braços, espontaneamente. Não posso sequer encostar um pouco mais forte em algo sólido, minha pele arrebenta. Se eu acaso corresse e alguém me segurasse de supetão, ficaria irremediavelmente despelado, porque uma fricção pouco mais acentuada torna-se intensa abrasão. A pele rasga, deixando à mostra a epiderme, a derme, e se facilitar o objeto contundente chega ao osso como faca na manteiga.

— No duro? É doença grave?

— Nem tanto, respondi, notando um brilho acentuado em seus olhos, que me pareceu menos de curiosidade, mais de satisfação.

— Como é o nome?

—  Ignoro. Nem sei se isso tem um nome. Os médicos acham que pode advir de má circulação. Inclusive, um doutor competente na profissão, embora pouco seletivo no que lê, já que se diz um de meus admiradores, acha que é processo natural de envelhecimento, que minha pele é mais sensível e por isso vai se deformando precocemente.

— Esse médico está correto em gostar do que você escreve porque são coisas interessantes — disse o mala, bajulando-me como ato preparatório para outra estocada: — Mas ele está errado ao falar de precocidade. Você já tem uns 60…

— 55.

— Jurava que era de 60 pra mais…

— Cuide de melhorar sua capacidade de observação porque, não obstante estes meus problemas, a maioria das pessoas acha que ainda nem cheguei aos 50.

— Esses descascados nas suas mãos também são de velhice?

— Não. São decorrentes de outra doença, chamada psoríase.

— Ahn?!, grunhiu, os olhos meios esbugalhados. Pizô o quê?

— Psoríase. Uma doença incurável, felizmente controlável. É com “p” mudo que se escreve, mas lê-se ”pizôríaze”, cuidando de pronunciar os acentos adequadamente.

— Não tô falando? Mais doença de intelectual. Outro dia encontrei um colega seu que tem…, ah, ah, ah (gargalhou, fazendo um gesto desmunhecante), que tem…, flebite. Veja só (caprichou nos meneios afeminados, acentuando e escandindo as sílabas): fle-bi-te. Nem é febre, nem é meningite. Vocês não podiam ter uma doença de gente normal, tipo alergia, bronquite, reumatismo, asma?

— Pera lá. A maioria das doenças não faz distinção de categoria social, cor, raça ou sexo. A psoríase mesmo é uma das mais democráticas. Ela acomete, segundo dados científicos, cerca de 3% da população mundial de negros, brancos, pardos, homens, mulheres.

— Gente nova também?

— Sim. Raramente até em crianças. Mas seus picos de incidência se dão dos 20 aos 50 anos. Vi outro dia na Internet o drama de um jovem recém-casado com psoríase na glande.

— Grande?

— Não. Glande. Sabe, a cabeça…

— Do pinto?, arregalou os olhos.

— Isso. A doença não escolhe lugar, embora tenha preferência pelas juntas, principalmente joelhos e cotovelos. Felizmente a minha é de natureza leve a moderada (80% dos casos, segundo o Dr. Drauzio Varella) no restante do corpo, infelizmente aguda no couro cabeludo. Mas a do rapaz recém-casado, coitado, causou uma fissura extensa na glande. Uma rachadura, entende?

— E na hora de…?

— Como pode haver hora de…, com aquilo rachado?

— É. Fica difícil. Pode entrar um lado, e o outro, não.

— Não brinque com a desgraça dos outros, censurei, raspando de sacanagem as faces posteriores dos dedos de uma das mãos em seu braço.

Ele deu um salto vigoroso para trás, parecia em transe.

— PelamordeDeus, Zêinrrique, retrucou, esfregando febrilmente o local. — Quer que eu pegue essa coisa?

— Relaxa. Não é contagiosa.

— Mas que é feio…!

— Em compensação, segundo algumas correntes científicas, quem a desencadeia é o meu sistema imunológico, preparado além do necessário para combater os males. É tão hiperativo e tão bem armado que chega a confundir as células boas das ruins, a ponto de atacar as boas por engano. Excesso de virilidade, sabe? As pragas verdadeiras, então, já viu, né?

— Olhando por esse ângulo…

— E você, não tem uma doencinha qualquer?, perguntei.

— Não, graças a Deus.

— Mas a madame tem, não é?

— Nadica de nada. A patroa é uma potranca (riu da cacofonia proposital). Está vendendo saúde.

— Você está enganado, contestei, já dando o fora dali. — Ela tem uma doença que é até mais esquisita que a minha, por coincidência também começando com “p” e terminando com “íase”. Mas fique tranquilo porque não compromete sua natureza potrancal.

— Que doença?

— Pogoníase.

— Pogo…

— Dizem até que é você quem faz a barba nela…, gritei, nesta altura a mais de 200 metros dali, ouvindo a série de imprecações e de insultos acompanhada de gestos ameaçadoramente belicosos.

Se fico por perto, imaginem como ficaria a minha pele!

Publicado em fevereiro/2010

Ganha o céu uma estrela refulgente

 

— Tchau, pai. Vou dar uma volta.

— Vai de quê?

Leonardo Azeredo Vaillant, com o costumeiro sorriso sempre estampado, balançou as chaves do carro novo que o pai Marcos Tadeu havia comprado cerca de dois meses antes.

— Vai com Deus. Devagar, hein! Este foi o último diálogo do jovem de 23 anos com o pai, ocorrido no início noite daquele fatídico 23/12/12.

Por volta de 0h30 meu sobrinho Leonardo viria a falecer no Hospital São Vicente de Paulo em decorrência de um estúpido acidente ocorrido umas quatro horas antes. A comoção em Bom Jesus do Norte foi grande não apenas pela prematuridade da perda, mas também  pelas qualidades de um jovem que esbanjava alegria e vitalidade. Uma semana antes Leo recebera seu diploma de bacharel em Direito. Não pretendia advogar, mas tentar concursos públicos que a especialidade dispusesse.

Inteligente, trabalhador, simpático e agradável no trato com as pessoas, humilde, solidário, isento de vícios (uma ou duas latinhas de cerveja vez ou outra, mais pelo simbolismo social que propriamente por gostar de bebida), amar velocidade era seu defeito. Aliás, uma das poucas é às vezes severas divergências com a família. A mãe Márcia não cansava de recomendar prudência, de rezar e de confidenciar a parentes e amigos que vivia constantemente com o coração na mão pensando no que pudesse acontecer ao primogênito. Lá atrás, quando Leo manifestara interesse em ter uma moto, o pai tentou enfaticamente demovê-lo da ideia. Mas não podia interferir no livre-arbítrio do filho, e quando este, de maior idade, oficialmente habilitado a pilotar, usando o próprio dinheiro ganho no trabalho apareceu com uma reluzente Honda de 350 cc, tudo o que a família podia fazer era persistir nas recomendações. Por ironia, foi com o carro que perdeu a vida!

Está difícil para os familiares se conformarem com a terrível perda. A saudade dói demais, o vácuo da ausência é monumental, os referenciais de vida se perderam nos desvãos do sofrimento. Mas o conforto reside na fé e na capacidade de serem fortes, reside nas doces lembranças de Leonardo. É confortante tantas manifestações de solidariedade, a constatação de tão amplo círculo de amizade que Leo fez com sua capacidade toda especial de seduzir, a intensidade de luzes e de cores que emanam dos sentidos dos que o conheceram.  Prazeroso é o tamanho do apreço e da consideração das quais era credor, de tê-lo na conta de bom filho e bom irmão da Esthefany, sendo o pai um ídolo que até mereceu o nome tatuado no braço.

Leonardo Azeredo Vaillant. A maior dor que atingiu os corações foi sua perda!

Publicado em janeiro/2013

Unidade de Saúde Central de Bom Jesus do Norte à disposição do History Channel

No início do ano passado o Governo Estadual liberou verbas para a construção da nova Unidade de Saúde do Centro, em Bom Jesus do Norte/ES. No Governo Municipal anterior, quase que a obra foi concluída.

De vez em quando assisto no History Channel ao programa “O mundo sem ninguém”. Interessante acompanhar a deterioração gradual das construções humanas que vão sendo tomadas, tombadas e tripudiadas pela natureza num mundo fictício em que a civilização fora dizimada. A simulação de prédios sendo invadidos por plantas, pontes monumentais tombando por falta de manutenção, a Estátua da Liberdade reduzida a pedaços enferrujados numa Manhattan parecida com a Amazônia é realmente um trabalho visual formidável realizado com ajuda da tecnologia.

Conclusão: Nossa unidade de saúde periga despertar a atenção do pessoal do History, e nem precisará de computadores, já que o abandono é real e dispensa simulações. Mais um tempo e poderemos contemplar o verde orgânico a desafiar a barreira de concreto, ferragens e revestimentos de uma edificação que nunca foi usada, apesar de bastante necessária e erigida numa cidade que, ao contrário da ficção, é habitada por cerca de 10 mil pessoas vivinhas da silva.

Publicada em outubro/2009