Aqui eu guardo meus escritos.

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Não há gaze em Bom Jesus do Norte/ES, mas nem tudo está perdido: o Hospital São Vicente de Paulo ainda esteriliza gaze

Fiz uma cirurgia no dia 9/7, no Hospital Evangélico, em Cachoeiro de Itapemirim/ES, para remover um câncer de pele que se engraçou com o meu ombro esquerdo. Era um carcinoma basocelular, que a faca competentíssima do Dr. Paulo Brunoro promoveu a separação amigável.
Aliás, muito amigável, porque embora a neoplasia maligna tivesse tomado uma grande extensão da pele, nada senti durante nem após a cirurgia, da qual ainda estou me restabelecendo e espero não reatar a relação nunca, jamais.

Dia seguinte, já em Bom Jesus do Norte, fui trocar o curativo numa Unidade de Saúde aqui perto de casa. Uma mocinha simpática e gentil fez o serviço. Quando fui no dia seguinte, a moça, um tanto constrangida, me perguntou se eu tornaria a voltar. Respondi que sim, que pretendia fazer todos os curativos necessários por meio de suas mãos delicadas.

— O senhor poderia passar antes na farmácia e trazer gaze esterilizada? — pediu, com uma voz quase sumida.

— Ahnnnn?

— É que a nossa acabou faz tempo. Essa que estou usando é gaze de rolo, que a gente aqui recorta com tesoura e leva no Hospital São Vicente para esterilizar. Mas também os rolos acabaram, os últimos pedacinhos são estes que estou usando no senhor agora…

Pensei imediatamente nas manifestações de rua que estão pipocando por esse Brasilzão afora, vivenciando, naquele momento, exemplo clássico de um dos milhares de motivos. Gente, não há gaze em Bom Jesus do Norte. Em todos as unidades, segundo soube. Gaze! Se não há gaze, há o quê?

Mas como diz o ditado que tudo tem seu lado bom, vislumbrei um neste miserê em que vivemos: o Hospital São Vicente de Paulo ainda é capaz de esterilizar gaze!

Publicado em julho/2013

A conspiração da gentileza

— Seja bem-vindo, senhor. Em que posso ser útil?, recebeu-me a sorridente balconista, com uma cara de felicidade jamais vista, como se eu, como cliente, tivesse muita importância. Quase caí para trás. O que estaria havendo naquela loja comercial de uma cidadezinha das redondezas, um lugar onde o cliente, o freguês, o contribuinte, o paciente, o usuário e demais mantenedores da economia do lugar não costumam ser dignos de tanta atenção, às vezes vistos até como inoportunos? O inusitado me abstraiu dos objetivos que ali me levavam, e a falta de costume, a cultura da rispidez e da ignorância me causaram irritação com tanta simpatia inusual. Respondi-lhe com outra pergunta:

— O que a senhorita viu de tão bom ou bonito hoje? Um pássaro amarelinho, a cara-metade com uma incomum ereção? Só pode ser algo parecido, porque se a senhorita tivesse acertado na Lotomania certamente não estaria nesta espelunca com essa cara ridícula.

Ela continuava a sorrir, impassível, nenhuma mudança nas feições ternas e serenas. Um sorriso franco, aberto, absolutamente sincero.

— O Sr. deseja ver uma de nossas coleções? Olha, acabamos de receber…

— Não quero nada. E quer saber? Esses seus dentes clarinhos, bonitinhos, aposto que não são naturais, arrematei sem nenhum pudor da mentira.

Saí dali com o mau-humor característico dos ares e dos ambientes, fortalecido em particular às segundas-feiras, e fui a uma locadora pensando em algum filme do Van Damme, Stalonne, Swazenegger ou do Charles Bronson (poderiam ter feito um do Bin Laden em ação). Para meu desespero, o mesmo funcionário que na semana passada se prestava a um colóquio tão interessante com outra funcionária, e nem sequer me havia notado (ou fingiu que não) se dirigiu a mim como se eu fora um rei:

— Às ordens. Posso ajudá-lo na escolha? — disse, acrescentando sem aguardar resposta. — Qual o estilo que o cavalheiro prefere?

— Prefiro que você me responda qual a razão desse seu sorriso idiota. Não estou te entendendo; ou melhor, pensa que sou “entendido”?

Abri a porta com rispidez e saí. Não, algo havia de errado. Estava me sentindo um peixe fora d´água. O que estaria acontecendo na cidade? Que onda de cortesia e delicadeza era essa? Só falta o dono da loja de informática estar simpático, os caras daquela antiga gráfica que mais pareciam funcionários públicos, sem o costumeiro pedantismo e intensa soberba, pensei, arrepiado. Peguei o meu Monza 1986 velho de guerra e segui para uma revenda da cidade, disposto a avaliar a carroça. Lembrei-me que certa vez o vendedor (acho que o dono) lia um jornal sentado em sua mesa no escritório, e lendo e sentado ficou quando cheguei. Quando eu disse “quero trocar esse carro” ele fez um ar entediado e o máximo de atenção que me dispensara foi levantar os olhos sem abaixar o jornal e dizer:

— Só aceitamos na troca carros do ano 1990 em diante — e voltou ao exercício educacional da leitura, sem esperar alguma pergunta ou observação replicante. Mas agora, bolas, adentrei o pátio da mesma revenda e fiquei lívido quando o mesmo cidadão, com ar afetado de reverência e mesura fez um sinal tipo “pode entrar que a casa é sua“, um sorriso insuportável nos lábios.

— Ano 86? — apontou para a lata velha.

— Sim.

— Pela idade, está em bom estado…

— Nem tanto. Poupe-se das gentilezas, só quero saber o valor desse troço. Não tenho dinheiro para comprar nenhum dos seus.

— Ora, ora… dinheiro não é problema. O sr. tem nosso crédito — era inacreditável a polidez.

— Não tenho e não quero crédito coisa nenhuma, está me entendendo? E por favor, pare de sorrir.

De maneira alguma o homem esmoreceu no seu sorriso. Muito pelo contrário. Sua boca se estendeu ainda mais, e eu imaginei que por pouco os cantos dos lábios não se encontraram atrás do pescoço, na nuca.

— Temos aquele Corsa, aquele Pálio completo… Não, não. O senhor não é homem de carro popular. Que tal aquele Ômega, aquele…

Foi demais para mim. O sorriso tranquilo, inabalável, me fez perder decididamente a cabeça.

— Olha. Se você não recolher esse sorriso imediatamente, vou te enfiar a mão na cara!

Nada. Nenhuma reação. Nem um músculo se mexeu. E o sorriso continuava. Impassível, inquebrantável, intrépido. Levantei-me e lhe desferi um chute na bunda e um sopapo com a mão fechada bem na nuca. Porcas, arruelas e parafusos se soltaram e a cara foi ao chão, separada do pescoço, desmantelada de um encaixe perfeito. O maldito ainda sorria em meio ao zumbido das faíscas dos curtos-circuitos!

Imediatamente um clarão tomou conta da cidade e uma imensa nave desceu. Uma legião de clones sorridentes e gestos delicados para ela se dirigiu e foi entrando pela porta da frente, levando o companheiro seriamente avariado. Na porta de trás desciam atabalhoadamente, empurrando-se, rostos fechados, mal-humorados, os originais.

Ainda bem que tudo não passou de um susto. Desmontei a conspiração da civilidade a tempo, pensei depois, aliviado, na mesa imunda de um bar, enquanto pagava ao garçom carrancudo, oito das seis cervejas que tomei, mais os 10%.

Publicado em agosto/2002

A poesia arrefece as dores. Eu me aliviei, me alivio e me aliviarei, e sugiro que você experimente a balsâmica substância

No outono da experiência, lembro-me da primavera verdejante de dúvidas e incertezas. De 18 para 19, a paixão avassaladora: Maria das Dores (e de dor é que falarei). Residente na mesma rua em que eu morava. Nenhuma abstração era capaz de ofuscá-la no pensamento. Último rosto do dia moldado pelas sinapses ao dormir; primeiro, ao acordar. No ônibus, em casa, “na rua, na chuva, na fazenda”, no trabalho, na escola… Ela! Papo com os amigos, assunto único, que entediava a eles tanto quanto me incendiava a loquacidade. Encantamento, fascínio. Um Ford Corcel GT conversível, sonho de bem material tão impossível quanto a materialização do sonho de um amor continuado, imaginando-a ao meu lado com as madeixas ao vento, aqueles cabelos lindíssimos, fartos, compridos, bem cuidados, — negros como as asas da Graúna, Alencar! — emoldurando uma face morena, meiga, angelical, olhos vivazes, sonhadores. Uns 10 meses depois, o dia aterrador:

— Tchau, José Henrique, acabou — foi a sentença cruel, dilacerante, pronunciada de chofre, menos por crueldade que pelo pragmatismo e objetividade da inocência que desconhece meias palavras, falsidade, dissimulação. Fui à escola, à noite, também naquele dia inolvidável, embora sem disposição. Tudo passou a ser tão horrivelmente diferente naquelas ruas, naquele bairro, naquela escola, naquela terra agora inóspita, absurdamente descolorida, incrivelmente solitária! Na sala de aula nada eu distinguia daquela algaravia patética, produzida por bocas patéticas, de colegas trajados com patéticas camisas apertadas, as calças patéticas de bocas largas, eles achando interessante tudo o que era patético. Parafraseando Nabokov, os eflúvios de equilíbrio, conformação, grandeza, otimismo, fé, esperança eram por demais tênues para que pudessem se distinguir na imaginação de um louco. Levanto os olhos casualmente. Então a lousa passou a me sussurrar com ternura, com indizível carinho:

Chora de manso e no íntimo… procura,
curtir sem queixa o mal que te crucia:
o mundo é sem piedade, e até riria
da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece, e é grande, e é pura.
Aprende a amá-la, que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
e será, ela só, tua ventura…

A vida é vã como a sombra que passa…
sofre sereno e de alma sobranceira,
sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E peça humildemente a Deus que a faça
tua doce e constante companheira…

“Renúncia”, soneto de Manuel Bandeira. Anotei-o, decorei-o, lustrei cada letra, cada sílaba, cada palavra com o esmero de um joalheiro tratando suas pedras. A professora o havia transcrito para aquela aula de português, mas sei que com exclusividade para mim, inspirada por algum anjo. As palavras do poeta foram um bálsamo, um potente anestésico na psique. Amar a dor, transformá-la em alegria, sofrer sem gritar…, que sacada. E ainda um rabo de papel no traseiro do mundo impiedoso, a ridicularizá-lo. Genial!

Salvou-me a poesia. Daí, amasiei-me com elas, em especial com os sonetos, que Guilherme de Almeida disse ser “a fôrma da perfeita forma” e “quatorze degraus da perfeição”. Genérica, de larga amplitude, é uma panaceia.

Encerro
Pode ser que este texto seja objeto de alguma troça, umas caras de paisagem, semblantes irônicos, risinhos sarcásticos, sobrancelhas em trêmulas volutas até os topos de crânios calvos. Mas inclusive a estes, mais que lhes dar a conhecer uma quadra de vida juvenil, desejo afirmar minha convicção inspirada por Schopenhauer, que escreveu: “quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência, com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma história da dor”.

E a poesia fortalece o espírito para essa que é inexorável na vida de todos nós, sejam as físicas ou as da alma.

Texto produzido em data incerta

Ana Lara: um anjo loiro encantador!

Diz-se que avôs e avós são mais corujas que os pais. Vejo por aí uma plêiade de vovôs e vovós compondo regularmente panegíricos aos netos e netas, extasiados com a doçura dos pequerruchos, cheios de amor e de desvelo. Também sou avô, do Lucas, que hoje tem 12 anos. Não lhe dediquei nenhum texto laudatório, entretanto, porque não me ocorreu pontuar meu afeto por ele também dessa maneira. E como nessa idade ele certamente não iria gostar de babação de avô, faço-o com Ana Lara, que não é minha neta, mas considero como se fosse. E duvido que haja avô de verdade mais babão que este avô postiço.

Larinha é irmã materna do meu filho caçula Gabriel, filha de minha ex, Silvana. Uma doçura de criança em todos os sentidos. Não tem preconceito a colos, é simpática com todo mundo e, aonde vai, logo se adapta, arrebatando os corações de tantos quantos interagem com ela. Aos dois anos ainda não articula direito as frases, mas é delicioso conversar com ela, que repete como um gravador automático.

— O gatinho branco está debaixo da cama — falo. E ela responde no seu idioma próprio, que não sei reproduzir direito, cravando nos meus aqueles olhos fascinantes, de um azul ultramarino:

— Gatin banco basso da cama? Ou então, — o gatin peúdo (peludo); — a bola maela (amarela); — a tia ´tuli´ (Suely), etc.

Que a pequena Lara seja feliz em todos os momentos de sua existência, com a divindade lhe suavizando os espinhos da vida. Que seja uma criança livre, bem orientada, respeitada, gozando de uma infância plena de encantamentos; que seja uma adolescente inteligente e de mente sã; uma adulta realizada e feliz. As pequenas e esporádicas frações de tempo que eventualmente desfruto com Larinha (ela mora com a mãe em outro estado) são momentos deliciosos. Até bom, talvez, que as oportunidades sejam mesmo escassas, porque dizem que tudo em exagero faz mal. Assim, ela se livra de um chato quase sexagenário a lhe torrar a paciência, e eu me arrisco menos a ter um piripaque por excesso de ternura e de carinho.

Publicado em julho/2013

Bonjesino e Calçadino

Retornava de São José do Calçado dia destes quando, ao divisar a Praça São João, entrada de Bom Jesus do Norte, cheguei a me assustar com as duas figuras que vi ao longe. Melhor dizendo: dois guarda-roupas envernizados na tonalidade mogno! Ao me aproximar, a constatação: eram Bonjesino e outro ciclope até então desconhecido.

— Para aí, chefia — arremeteu o gigante em frente à moto ainda em movimento, aquela mão direita descomunal espalmada no ar em saudação à moda hitlerista. — Há quanto tempo não o vejo, meu cronista predileto — trovejou, já dando o abraço de paquiderme antes mesmo que eu parasse.

— Como tem passado, Bonjesino?

— Se melhorar, estraga. E você, chefia?

— Fora o reumatismo e a psoríase…

— Tá vindo de São José das Broas?

— Broinhas — respondi à menção da alcunha que antigamente dava até morte, mas que o povo calçadense atual aceita de boa.

Para quem não sabe, Bonjesino é meu imaginário coadjuvante, um mulato gigantesco no tamanho tanto vertical quanto horizontal. Boa-praça, de índole pacífica, ingênuo como uma criança, só fica zangado quando alguém critica os políticos brasileiros, especialmente os de suas Bom Jesus, que ele julga os mais competentes, realizadores e honestos do Planeta. Aí, sai de baixo!

— Broinhas, é? Nem todos, nem todos. Olha um broão ali — disse, apontando o indicador com uma unha duvidosa em direção ao seu acompanhante todo sorrisos.

— Tripé, chega mais — berrou, apresentando-me: — Meu primo, chefia. Mais broa que fubá com leite no forno.

— Muito prazer — disse o novo bólido, oferecendo a mão ameaçadora que deixou a minha mais que dolorida, com sintoma de esmagamento dos metacarpos.

— Ui, digo, prazer…

— Calçadino, às suas ordens — fez uma mesura tão mal enjambrada que quase caiu.

— Mas… Tripé?

— Apelido de Calçadino, chefia — atalhou Bonjesino — Inventaram uma vez que viram ele pelado…, e pegou.

— Entendi. A propósito, Bonjesino, você não tem apelido, pelo menos eu não conheço.

— Bem que tentaram, chefia, mas comecei a dar porrada a três por dois, aí pararam.

—  Qual era?

— Tromba.

— Entendi também.

— Zêinrriqui, viu como Calçado está uma maravilha? Nossa prefeita, além de bonita, elegante, é tão competente… Está transformando nossa cidade na mais moderna e desenvolvida do estado, do país, talvez do mundo… — jogou Calçadino por terra com estas palavras minha esperança de que um confronto ideológico em família pudesse equilibrar os discursos de adoração.

— Pegou a doença de Bonjesino? — retruquei.

Naquele momento quatro sobrancelhas espessas deram uma guinada vertiginosa, transformando-se em traços que lembravam os de cartunistas de terror. Dois pares de olhos me fulminavam.

— Não falei, primo, não falei? É esse… o escrevedorzinho rabugento, que adora criticar — disse entredentes Bonjesino. E antes que meu desmesurado acusador desfiasse contra mim todo o mantra acumulado ao longo de anos de uma amizade conturbada, pedi:

— Stop. Seu primo, pelo visto, é tão exagerado quanto você. Concordo que a prefeita de lá é bonita e elegante. Parece que ela é bem intencionada, mas…

— Nem mas, nem porém, todavia, contudo. O primo Calçadino está certo. Aquela cidade encantadora entre montanhas e flores está mais encantadora e mais entre montanhas e flores do que nunca.

Foi aí que minha antiga rapidez de raciocínio despertou de uma longa hibernação para alfinetar:

— Claro, claro. Em termos comparativos com lugares em redor… ­— pausei com uma olhada cínica para o nada, a boca num esgar de falso conformismo para dar mais ênfase no complemento: — … Calçado é mesmo uma pérola…

— Opa. Captei vossa mensagem. Poparáááá. Embora não tão privilegiadas pela mãe natureza como Calçado, as duas cidades de Bom Jesus estão um brinco, porque nossas autoridades nem conseguem dormir de tão preocupadas com a boniteza, com a paisagem e a mobilidade urbanas. Aliás, coitadinhos de nossos prefeitos, vereadores, secretários, e até carimbadores adjuntos. Chegam a trabalhar 24 horas por dia de tão comprometidos em resolver todos os nossos problemas…

— Sei…, sei…

— Não faça essa cara de paisagem, chefia. Aquela rua que você passa com essa moto velha todo dia pra subir o morro, por exemplo… Viu o calçamento que refizeram? Hein? Hein? Se eu fosse você teria vergonha de botar um troço tão decrépito pra rodar num tapete como aquele.

— Só faltava deixarem aquilo como estava, Bonjesino. Uma montanha russa, com mais entrâncias e reentrâncias que o Grand Canyon, isso sim.

— Mas só ficou desse jeito uns cinco anos, seu maledicente. O pessoal é rápido pra resolver as coisas…

Nesse momento Calçadino apartou:

— Falar nisso, a estradinha que contorna nossa cidade não ficou uma joia rara? Alguém por aí criticava tanto… — interrompeu o broão com olhos enviesados, como os da cigana oblíqua e dissimulada machadiana. — Quero ver agora os elogios — disparou, gestos ainda mais eloquentes que as palavras.

— Pode esperar sentado, primo, que em pé cansa. Gente como essa… — interveio Bonjesino desdenhosamente, com ares de muxoxo.

— Vocês acham mesmo que aquilo podia ficar do jeito que estava há mais de século? — exagerei. — Mais um segundo que seja com todo aquele barreiro e poeireiro? —- abusei do exagero, incluindo o neologismo para reforçar a provocação.

— Tsc., tsc, tsc. Como você aguenta, primo Bonjesino?

— Depois do que ele deitou falação daquele trechinho que vai de Bom Jesus ao Cruzamento de Itaperuna…, tô pensando em desistir dessa amizade, primo Calçadino.

— O que eu disse de mais? — perguntei. — Que depois do Cruzamento em direção a Itaperuna e ao Rio de Janeiro a BR parece uma rodovia da Suíça, e o nosso pedaço, um queijo suíço?

— Como se não soubesse que a estrada é estadual e não depende do município — lembrou Bonjesino, na defensiva.

— Saber, eu sei. Você que não entendeu quando eu disse da falta de representatividade, de pressão política. Quantos bom-jesuenses trafegam por aquela estrada diariamente, décadas e décadas pulando mais que pipoca na panela, correndo riscos por falta de sinalização. Incrível estar assim até hoje.

— Viu, Calçadino, como esse homem é ansioso? E virando-se para mim, explicou, num didatismo malemolente:

— Chefia, se liga. O que são alguns anos de espera para um benefício eterno? Não tem nem 30 anos que a estrada está ruim e você já quer logo asfaltinho niveladinho, acostamentinho direitinho, faixinhas amarelinhas e branquinhas, até plaquinhas indicativinhas…

— Para com essa viadagem, Bonjesino. O dia que morrer um parente seu acidentado…

— Cruzes. Xô urubu. Além de maldoso com nossas incansáveis autoridades, virou agourento também? Esse, primo, é capaz de criticar até o sagrado Lula, aquele bem-aventurado que tirou os brasileiros da miséria. Eu mesmo… snif, snif — um soluço o obrigou a uma pausa, mas esforçando-se para se recompor, Bonjesino prosseguiu: — eu mesmo só fui saber o gosto de um bife de paleta depois que o idolatrado Lula me deu Bolsa Família. Um santo…, um  santo.

— Do pau oco.

— Depois de velho deu pra obscenidades, chefia? Saiba que o divino Lula é homem com H. Casado, teve filhos…

— Nãoooo, Bonjesino. Só a casca, entendeu? Só a casca é de santo, por dentro é oco, oquinho da silva.

— Oquinho é você. Oquinho e ingrato. Mas vai ser castigado, ah, se vai. Sabe como? Tendo vida longa pra poder engolir, e até escrever, quando o Vaticano beatificar e depois santificar esse homem enviado por Deus.

— Querem saber? Passem bem, que já estou indo.

— Espera, chefia. Vamos marcar uma hora pra a gente conversar mais. Você, eu, Calçadino, Apiaquino…

— Quem?

— Nosso primo Apiaquino, de…

— Apiacá?

— Adivinhão!

— Adoraria — disse eu depois de um momento para me refazer do susto. — Mas não vai dar porque estou preparando minha mudança.

— Vai mudar pra onde, homem de Deus?

— Quirquistão.

— !!!???

Publicado em mídia impressa em junho/2015 e no Blogger em fevereiro/2017