Aqui eu guardo meus escritos.

Obrigado pela visita.

Dilma homenageia a mandioca devidamente acomodada no fiofó dos brasileiros, com perdão da chulice

Antigamente, quando não existia a necessidade frenética da afirmação da igualdade de gêneros, as pessoas eram mais felizes, mais espontâneas. Seres humanos eram homens e mulheres, que daqui a pouco pode vir algum babaca dito progressista encrencar com a terminologia e incutir nas mentes politicamente corretas e ridiculamente equívocas que se deve instituir ser humano, para o gênero masculino, e ser humana, para o feminino.

Eu mesmo, que em tempos memoráveis escrevia para meus leitores, que, claro, incluía homens e mulheres… (Epa! Uma pausa. Na época do bom e velho ginásio, nos era ensinado que ao misturar palavras masculinas e femininas, a fusão deveria gerar um termo masculino. “Machos e fêmeas humanos”; “os pais”, designando progenitor e progenitora; “os jovens”, “os consumidores”, etc., etc., etc. Então, progressistos e progressistas chinfrins, eis outra dica para preencher o tempo da sua falta do que fazer. Obriguem a falar e a escrever o pai e a mãe, o jovem e a jóvena, ou o adolescente e a adolescenta. Aquela cidadã não é presidenta? Nem vai faltar jurisprudência.)

Mas ia dizendo que meus textos faziam referência aos leitores, até que um dia uma leitora questionou: “Você só escreve para homens?” Surpresa! Espanto! Daí em diante passei a me dirigir ao amável leitor e à graciosa leitora, entendendo aí os adjetivos, mais que gentileza, uma forma de amenizar meu desconforto na adaptação a esses tempos de valores e cultura incrivelmente superficiais.

Ocorre-me a equação do biscoito: é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque fresquinho. Nós tivemos um presidente — e ainda o temos como eminência parda — que dizia se orgulhar de ter nascido de mãe analfabeta e de que o diploma superior que recebeu não veio das universidades, mas das urnas. O presidente semianalfabeto foi quem inspirou, estimulou a relativização do preparo intelectual, ou a era que relativizou o preparo pariu o presidente semianalfabeto? Não por acaso a presidenta, que não tem um primeiro-damo, pelo que sei, dia desses fez uma ode à mandioca. Talvez como reflexo condicionado por ter inserido a dita-cuja figuradamente no orifício do povo, mandou ver, quando discursava no lançamento dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que serão realizados em Palmas/TO, de 20/10 a 1/11/15: “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação. E aqui nós temos uma, como também os índios e os indígenas americanos têm a deles, nós temos a mandioca. Então, aqui, hoje, eu estou saudando a mandioca. Acho uma das maiores conquistas do Brasil”.

Uma pensadora, que faria corar de inveja Schopenhauer! Mas espere, que uma mente genial desse jaez não poderia se satisfazer apenas com a lírica homenagem à mandioca. Ela resolveu também brigar com dicionários e enciclopédias do mundo todo, que não flexibilizam o termo milenar “homo sapiens”. Daqui em diante, cesse tudo o que a antiga musa canta que outro valor mais alto se levanta: sua excelentíssima, com excelsa sabedoria, membro de escol do clube do politicamente correto, decretou que agora temos a “mulher sapiens”. Ao receber um souvenir das mãos de um participante neozelandês, na forma de uma bola de folha de bananeira, a presidente ensinou, generosa: “pra mim essa bola é um símbolo da nossa evolução. Quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homos sapiens, ou mulheres sapiens.”

É nóis!

Publicado em mídia impressa em julho/2015 e no Blogger em fevereiro/2017

Duelos em Itabapoana Valley – IV

 

APIACÁ CITY
O cowboy Bethin “The Kid” é xerife do condado há six years. A primeira vez que The Kid assumiu foi em fins de 2010, muitos lembrando-se da escaramuça que derrubou Keres Joseph. Este era o xerife de Apiacá City, cargo que ganhou nas elections de 2008, mas o terrível pistoleiro The Kid acertou uma saraivada de balas, depois do duelo, em Keres Joseph, com o auxílio da mira telescópica da Electoral Justice, que considerou Keres Joseph um fora da lei por ter supostamente comprado munição (votos) de forma ilegal.

Pois bem: Bethin The Kid “xerifou” nos últimos four years por ter sido re-elected, e portanto não pode manejar seu arsenal diretamente now. Mas doou as armas a seu xará Bethin Mirando, que vai para o front com a ex-secretary de Social Action, Rose Anne, e contará ainda com o revólver de aluguel do famoso matador Allan Dirck, ex-xerife, entre outros colts, Smiths and Wessons, etc.

Ocorre que Carl Magnum Oliver, apelidado K.K. (Kid Killer), que foi camarada de Bethin The Kid nas elections de 2008 como vice-xerife, logo em seguida rompeu relactions, tornando-se um forte rival. Então K.K., que por pouco não venceu o combate com The Kid em 2012, disse que não deixará barato para Mirando e Rose Anne, preparando sua brava wife, Heidy Lane, para acompanhar como vice um pistoleiro que vai se apresentar first time nas pradarias de Apiacá City: your name is Phabrice du Post.

Phabrice reuniu, além de K.K. (que vai se tornar um atirador ainda mais perigoso ao defender sua woman), alguns pistoleiros igualmente sinistros, como o próprio Keres Joseph, que está com gosto de sangue na boca desde 2008, bem como outros com a faca entre os dentes. Du Post, portanto, terá dificuldade em justificar uma possível derrota, pois “combustível” não lhe faltará.

Também em Apiacá City há um terceiro homem em conflito, que é o Doctor Roy, pistoleiro tão genuíno que até o nome real remete a bang-bang, sequer permitindo ao cronista tupiniquim fazer um trocadilho yankee. Interessante é que também ele escolheu uma woman para lhe acompanhar os passos, acender a fogueira para o bule, cerzir as  t-shirts, essas coisas. O nome dela é Ann Beatrix.

GOOD NORTH OF JESUS
O clã liderado pelo legendário ex-xerife, ex-deputy e ex-president do Tribunal of Counts E.S. State, Humbert Mess, resolveu colocar na linha de frente o filho dele, Mark Mess. E Mark vai muito confiante para o combate com sua vice Angel K. Bathist, inclusive porque atraiu para o seu lado um até então inimigo histórico do clã, o terrível pistoleiro que também foi xerife: doctor Ted Elbah Tist.

Parecia até pouco tempo atrás impossível Ted Elbah Tist aliar-se a essa força, já que ele e Humbert Mess nem sequer se tratavam pelos nomes, como inimigos ferrenhos que eram. Inclusive, na batalha anterior de 2012, Ted Elbah Tist duelava justamente contra Mark Mess, que era vice do tio, Ubald, por sua vez irmão de Humbert. Naquela ocasião, Ted Elbah Tist lutou com unhas, dentes e demais protuberâncias em favor de Peter Chats, inclusive cedendo a Chats o próprio filho Djangorson, como vice.

Mesmo assim não deu; Ubald levou. Especulo que até o forasteiro Doctor Ad Masterson, que igualmente havia ganhado de Mark Mess em 2008 quando Mess vinha na linha de frente, também se engajou. Mas careço de confirmation, coloquei aqui mais pela brincadeira com o nome de William Barclay Bat Masterson, lendário personagem real do velho oeste americano que inspirou até música.

But, contudo e todavia, tal e qual um abnegado Franco Nero, o pistoleiro Anthony Gualhan promete disparar sua metralhadora e resistir até a última bala, colocando-se como alternative. E conta com o auxílio de uma pistola bem lustrada, embora pouco barulhenta, de Faust Baptist, que não foi xerife mas exerceu important political functions no condado. Além de Gualhan, um tal Saloon Thiel também se apresentará no duelo, assim como Mark Hon Daexcel , Fabhin Domanec  e  Aloys Texan.

SAN JOSÉ DEL CALÇADO
Joseph Karl havia ganhado milagrosamente em 2008 do pistoleiro de olhos frios, porém azuis com as águas do oceano, Blue Eyes All Mars. All Mars estava tão seguro da vitória, e seu adversário para ele tão insignificante que, ferido mortal e irremediavelmente naquela contenda, fez lembrar uma das cenas mais famosas do western, protagonizada por Henry Fonda e Charles Bronson no clássico “Era uma vez no oeste”, do diretor Sérgio Leone. Foi quando os olhos azuis ultramarinos de um Fonda tombado, perplexo, agonizante, fixaram os de Bronson, que o havia atingido no memorável duelo, e balbuciou: “who are you?”.

Joseph Karl, porém, recebeu o troco em 2012, fulminado pela bela amazon Lili Ann. Ele não perguntou “quem é você?”, pois já a conhecia, e ao marido desta, o ex-xerife Jeff Spad Bulls, mas certamente também ficou surpreso até por ter recebido poucos tiros a mais. E neste ano Karl irá novamente para a frente da batalha disputar, juntamente com o vice The-The, contra as forças de Lili Ann, representada pelo Teacher Cyro e seu vice Antery Anteror Dibrow. Também o ágil pistoleiro Anthony, mais conhecido como Kuik pode produzir uma carnificina no palco da batalha, que terá ainda outro contendor, um tal Bodok.

GOOD ITABAPOANA JESUS

Save Sboy é o representante da situação, comandada pela atual xerife Mary Grace Mott — a White Mott — e pelo marido desta, o ex-xerife com cara de bad, Michael Mott. O ex-governor del state, Serg Cab All e o atual governor licenciado Lux Ferdinand, também conhecido como Big Foot são os maiores apoiadores.

Mas Save Sboy terá de medir forças com os preteens Robert Tatoo e Paul Cyrill Jr. Tatoo será o pistoleiro principal, seguido do vice Jr., que vem a ser filho do ex-xerife Paul Cyrill. E com as bênçãos materiais deste mais vigoroso apoiador, juntamente com as bênçãos também dos ex-governors Anthony Little Boy e sua wife Rose-inh Little Boy, conclamando terem, além do mais. os louvores espirituais de Carl Garcy, o maior xerife que existiu no condado (recentemente dead), Tatoo e Cyrill Jr. terão de lutar com o young Save Sboy, mas também com pistoleiros veteranos, como o old man Paul Port e Sam Júnior (este, acompanhado do seu vice Maurice Sza Non).

Paul Port foi xerife e federal deputy, e embora exerça na atualidade atividades de doctor in health, promete realizar o inverso desse seu mister na linha de frente: matar. Para isso, terá ao seu lado o vice Carl Neil , além do apoio do very, very, very old governor in exercise, Francis Door Nels.

Good luck to everyone.

Publicado em mídia escrita e no Blogger em setembro/2016

Era falso. E trágico!

Num conhecido país a falsificação das coisas e a falsidade de muitos eram comuns. E trágicas. Fernandes Ventura fora um dos… desventurados. Sua sina começara no momento em que viera à luz em terra brasilis, pois já nos primeiros minutos de vida fora apresentado à falsidade em forma do “que gracinha”, elogio que muitos endereçavam a sua mãe mal disfarçando o repúdio por criança tão feia. 

Em meio às falsidades o garoto crescera sem sequer saber a quem chamar de pai, muitos eram os prováveis candidatos que acreditavam cada qual na falsa fidelidade jurada por sua mãe. Adulto, passara por maus pedaços na época das falsificações de remédios: sofrera terrivelmente com a perda do filho, vitimado por uma infecção que o antibiótico falsificado não curou, filho este que não estava nos planos, fora produto de um anticoncepcional falso fabricado com farinha de trigo.

Para apagar a tristeza tomou uma, duas, três doses de uísque falsificado no Paraguai, que lhe causou terríveis dores de cabeça. Procurou um médico e este rabiscou no receituário um indevido laxante, que por ser falso não surtiu os desagradáveis efeitos. “Ainda bem”, pensou, “acho que sou o único ser humano feliz por ter tomado um remédio falsificado”. Descobrira depois que o médico era falso, sua verdadeira profissão era barbeiro.

Fernandes Ventura sentiu necessidade de relaxar. Foi ao Maracanã assistir a um jogo do seu Flamengo que sabia ser, naquela época, falso — aqueles pernas-de-pau podiam ser tudo, menos jogadores de futebol. — Não conseguiu. Foi barrado na roleta porque o ingresso era falso. 

Solicitou um pequeno empréstimo a um amigo que encontrou nas imediações a fim de adquirir outro ingresso. “Não tenho”, foi a resposta que ele sabia ser falsa de um amigo idem. Aborrecido, foi para casa. Pegou mais dinheiro. No caminho de volta ao estádio resolveu alterar o programa; não resistiu aos encantos de uma loura que dava mole e foram para o motel. Lá chegando, descobriu que a loura era falsa, seu “documento” não deixava dúvidas. Mesmo assim, arriscou, precisava descarregar as tensões.

Saiu preocupado do motel porque na hora H a camisinha furou porque
a quadrilha que falsificava os preservativos utilizava bolas de soprar. Já em casa, recebeu a visita da polícia. Procuravam-no para deslindar a lance da falsificação da nota de R$ 100 com a qual pagara a diária no motel. Ficou com mais um prejuízo e foi dormir. 

Martelava em sua cabeça o problema da camisinha. Acordou milagrosamente vivo em meio a toneladas de escombros: o prédio havia desmoronado! Tinha sido falsificado pelo Sérgio Naya, um deputado que falsificava tudo o que podia, de assinaturas até prédios residenciais — usava cimento em quantidades aquém das especificações em suas obras.


A somatização dos perrengues fez desenvolver uma doença de pele em Fernandes Ventura, e ele ficou sabendo que aqui em Bom Jesus havia um ótimo dermatologista. Não resolveu seu problema porque o diploma e o médico eram falsos: A Pomada Minâncora e a água boricada receitadas não ajudaram. Mas isso não foi o pior. A preocupação com a camisinha furada fazia sentido. Contraiu AIDS. E na mesa de cabeceira no quarto do hospital via vários frascos de remédio que ele tomava, mas não faziam efeito pois seu estado só piorava, já estava nos estertores. Pensou: serão falsos?

Eram, mas ele nem chegou a saber. As últimas imagens que suas retinas captaram foram a de um político de nove dedos, ex-metalúrgico, com seu tedioso blá blá blá desfiar pela TV na mesinha de cabeceira sua costumeira retórica e odiosa hipocrisia: “vamos moralizar a política no Brasil.”

Também era falso!

Publicado em agosto/1998

Debutei no ´quinqua´; ou, saúdam com igual ênfase a primavera em flor e o outono de folhas ressequidas, não sei porquê

 

Texto inspirado na crônica de João Ubaldo Ribeiro “Velhinho em folha” – O Globo, 18/1/2004.

Fiz cinquenta, leitores, agora em maio. Cinquentinha! O que posso lhes dizer a respeito, se é que lhes interessa? Que parece ontem eu exultava com um saco de brinquedos que o velho Chico Mendonça (homem generosíssimo que está no Éden, juntamente com o seu xará mais famoso – o Xavier) mandou para nossa casa na Beira-Rio, Bom Jesus do Norte, no Natal, creio que de 1959 ou 1960? Que ainda há pouco um orgulhoso pai saía sorridente da maternidade em Vitoria, encantado com o seu primeiro rebento nascido em 1979? E de outra maternidade em Olinda/PE, igualmente radiante pelo nascimento do segundo filho, em 1981? E de outra mais, no Rio de Janeiro, em 1982, com a única “filha mulher”, encanto dos encantos? E ainda outra, agorinha mesmo, em 1996, cheio de alegria com a raspa do tacho Gabriel?

Não vou filosofar quanto a rapidez do tempo, permitindo-me apenas adaptar uma citação de Léa Waider, fiel em traduzir o que vai em meu espírito ora cinquentenário: “Sou um bicho da noite, do crepúsculo. O barulho me fere a alma; busco a quietude, o contato comigo mesmo e com a natureza.” Espírito, aliás, que espero não desista desta carcaça antes que ela se torne secular (não deixemos as coisas inconclusas, amigo etéreo. Não se esqueça das células-tronco. Elas poderão nos dar um coração novinho, cheirando a tinta, imaculado de tantas emoções…; pulmões sem nicotina; figueiredo sóbrio; e até…, quem sabe…, deixa pra lá).

Dito isto, obrigado a todos pelas dedicatórias evocativas de saúde, paz e longevidade. Deduzo que os votos de parabéns quando se completa 50 não perdem em exaltação para os da mocinha que faz 15, e acho nisso uma contradição do inconsciente coletivo, que é saudar com igual fervor a primavera varonil e o outono de folhas ressequidas. Aos novíssimos amigos da confraria cinquental, eis que me apresento augurando a todos, e a mim também, a proteção da mesma divindade que dedica seus serviços aos cinquentões (em alguns casos, beirando ou até passando dos sessenta) Mick Jagger (que deu conta, com louvor, da estonteante Luciana Gimenez), Gilberto Gil, Caetano, Zico, etc. e tal. Eles estão aí a provar que nem tudo é bico de papagaio, reumatismo ou videogame com os netos.


Vejamos outros fatos positivos. Dia destes me surpreendi analisando com incomum interesse o caixa especial de um banco, mentalizando uma entrada triunfal daqui a 10 anos (passa tão depressa…) num banco qualquer, contemplando com desdém a jovialidade nas filas quilométricas.— Pensam o que?, direi cá comigo — tenho imunidade velhática, não entro em filas!

Da mesma forma, velhinho em folha lá pelos idos de 2019, recebendo da Viúva, sem fazer lhufas, um salário-mínimo, dedicarei aos milhões de desempregados nas filas (moços, mas, ai, que gostosa desforra…, sem dinheiro), nada mais que um olhar indiferente. Sacanearei o hoje nonagenário Camilo Colla, viajando de graça nos seus ônibus… Ah!, quantas oportunidades, quanta experiência enriquecedora me aguarda.

E o Estatuto do Idoso? Prevê até mesada para quando chegarmos à chamada terceira-idade (Jô Soares diz que só há duas idades: viva e morta). Ainda tenho bastante tempo (assim espero) para escarafunchar suas cláusulas e dedicar muita atenção a esta da mesada. Já pensaram, eu, com quatro filhos, se cada qual me dispensar algum? Poderei dar a volta ao mundo na primeira classe do Queen Elisabeth.

Adoção, pasme! Existe cláusula de adoção no Estatuto! Penso que deverá ser tal e qual se faz com as crianças, também vou estudar com interesse isso. Será que a gente vai ficar num lugar tipo internato, à espera de um casal simpático, e de preferência rico, em polvorosa, no pátio, roendo as unhas pela ansiedade de saber qual de nos será o felizardo?

— Aquele ali, branquinho, baixinho e barrigudinho, que gracinha, diria a esposa maravilhada ao marido apático, referindo-se a mim. E eu antegozando a vida deslumbrante que terei dali em diante: férias na Disneylândia, passeio no shopping, aparelho auditivo com joysticks e 10 megas de memória… Hein?

Produzido em maio/2004 para mídia impressa – Publicado no Blogger em abril/2013

Sexagenário, enfim. Preferência nos atendimentos é uma pequena desforra à gente nova nas filas

Fiz 60. E com exceção de um achaque aqui, outro ali, estou, como dizia o inesquecível João Ubaldo Ribeiro, velhinho em folha. Não sei vocês, velhinho/velhinha, que me leem, mas venho estudando com atenção o nosso Estatuto sancionado em outubro de 2003. Estou maravilhado com o que descobri. Direito a usufruirmos de unidades geriátricas de referência (de re-fe-rên-ci-a, encham a boca ao pronunciar), com pessoal especializado nas áreas de geriatria e gerontologia social, por exemplo. Está lá, no artigo III, do Cap. IV. 

Hein? Nós aqui em Bom Jesus, numa unidade de re-fe-rên-ci-a, sendo atendidos por gente es-pe-ci-a-lís-si-ma? Só falta não reconhecermos a generosidade do parágrafo 3º, Art. V: “É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”. Tão emocionante que me leva até às lágrimas…, snif, snif.

O Cap. V, que trata da Educação, Cultura, Esporte e Lazer dá um banho nesses paisinhos mixurucas tipo Dinamarca, Noruega, Suíça. Vejam isto, cidadãos ingratos, maledicentes: “Os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identidade culturais”.

Gostei especialmente da “transmissão de conhecimentos e vivências”, que quer dizer que prestamos para alguma coisa, muito embora não seja essa a percepção, eu diria, da maioria das pessoas jovens que nos tratam, umas com arrogância, outras com aquele infantilismo crônico e emburrecido que pespegava os pimpolhos das priscas eras que bem longe vão.

Disseram-me por alto que nosso Estatuto é tão progressista que até constaria cláusula de adoção, mas infelizmente não achei. Como já escrevi aqui, aos 50 já sonhava com a possibilidade futura de ser adotado, tal como fazem com as crianças, imaginando-me num lugar tipo internato, à espera de um casal simpático (rico, de preferência), em polvorosa junto a outros velhinhos, roendo as unhas pela ansiedade em descobrir qual de nós seria o felizardo.

— Aquele ali, branquinho, baixinho e barrigudinho, que gracinha, diria a esposa maravilhada ao marido apático, referindo-se a mim. E eu, como se as artrites e artroses fossem tônicos musculares, sairia correndo feito um desesperado, dando pulos de alegria ante a visão de expectativas maravilhosas, de brinquedos sensacionais, talvez até um aparelho de surdez com 8 gigas de ram e HD de 1 tera.

Justiça se faça ao atendimento preferencial nos bancos, que funciona (sem ironia, acredite). Dia destes até me surpreendi ao pegar uma senha para atendimento no Banco do Brasil de São José do Calçado. Havia umas 20 pessoas aguardando, razão pela qual calculei que mesmo com a prerrogativa da preferência, teria de aguardar alguns minutos. Saquei meu smartphone e nem bem reiniciei a leitura de “Padre Cícero”, de Lira Neto, a musiquinha no painel anunciou meu número. Levantei-me e passeei os olhos por cima das cabeças esperantes com um pequeno frêmito de desagravo por quantos ali nem se dão ao trabalho de pensar sobre a bênção que é poder envelhecer. 

Produzido em outubro/2014