Vim morar em Bom Jesus fugindo das ´cabadas´ de vassoura

É comum pessoas desistirem de viver em cidades grandes em troca da tranquilidade dos lugares interioranos. Sou um dos que renunciaram à possibilidade de trabalho mais compensador financeiramente por uma vida contemplativa, menos estressante, que só cidades pequenas possibilitavam. Digo possibilitavam porque isso está se tornando relativo, ao menos em relação às Bom Jesus que, diferentemente de lugares onde há um mínimo de planejamento, por aqui o crescimento é desordenado, um tanto bagunçado, e a vida já não é sossegada. Sem a compensação de boa estrutura de ofertas de produtos e serviços, de uma gama maior e mais variada de oportunidades, ficamos só com o tráfego que começa a congestionar, com a falta de vagas de estacionamento, com a tensão do aglomerado de veículos e de gente, com o ajuntamento a cada dia mais estreito das moradias e o inevitável conflito dos comportamentos humanos (alguns tão incompatíveis entre si como cebola em salada de frutas), com a carência de serviços básicos como Saúde e Segurança.
Um fato que ajudou a amadurecer a ideia de abandonarmos tudo e virmos para o interior se deu em dezembro de 1986. Comemorávamos o aniversário de quatro anos da nossa filha Mônica, no apartamento em que morávamos no Rio Comprido, Rio de Janeiro. Na euforia do momento, Mônica ensaiou um sapateado no sinteco da sala, o que despertou uma reação quase desvairada do mais velho, Luciano, então com sete anos (o outro, Júnior, tinha na época cinco), que a advertiu rudemente em seu engraçado linguajar infantil, arrancando gargalhadas dos presentes:
— Não pode pular porque o Péricles vai bater com a vassoura…
Então uma Moniquinha atemorizada, olhos arregalados para o irmão, se conteve, reprimiu a vontade de manifestar sua alegria. Péricles era o vizinho do apartamento de baixo, que vivia injuriado com o barulho que três crianças faziam ao andar, correr, brincar…, viver, enfim. O homem, de maus bofes, não se conformava com o mínimo rumor dos petizes. Qualquer ruído ele dava uma “cabada” de vassoura no próprio teto para reverberar sua indignação em nosso piso. E aquela reação do Luciano, seu semblante infantil num ricto de temor foi mais um componente para que decidíssemos radicalizar, dar uma guinada vertiginosa.
A neurastenia que já contaminava uma criança de sete anos era o reflexo do mau negócio que a humanidade fez em nome do progresso, era decorrente da vida em uma cidade grande com toda a sorte de impedimentos e limitações que acarretava. Tamanha preocupação num guri em tenra idade era… preocupante! Por assim dizer, era mais espantosa que a puerilidade sistêmica em um velho.
Chego aqui ao ponto: a troca revelou-se satisfatória, sobretudo em relação às crianças, que viveram em Bom Jesus uma infância mais amena, menos perigosa, justificando a renúncia que nos impusemos. Mas hoje certamente não faríamos igual, a relação custo/benefício seria injustificada. Nosso lugar tornou-se também inseguro, o relacionamento entre as pessoas se deteriorou, os espaços públicos estão uma desordem, o poder não encontra líderes que planejem suas cidades um palmo à frente dos narizes, quase tudo é feito de forma amadorística, a improvisação e o imediatismo imperam. Aqui não há regras para a construção de imóveis (parece que poucos sabem a largura que deve ter uma calçada, por exemplo), as cias. de abastecimento d´água e de saneamento esburacam as ruas, seus funcionários cavam às cegas sem terem sequer um mapa das tubulações, deixando as vias em petição de miséria.
Trafegar a pé ou em veículos por nossas ruas que, permitam-me, estão se tornando ridículas, é a cada dia mais tormentoso e perigoso. Nossos representantes políticos parecem destituídos de idealismo, de capacidade, de vontade. Estão, como de resto boa parcela de seus congêneres, contaminados pela doença d´alma de nome dissimulação, viciados em muito prometer e pouco cumprir, aprisionados nos grilhões da indolência ou incúria que lhes deixam como herança maldita a pouca disposição real para muita vontade fictícia. Se suas excelências rompessem a inércia administrativa que nos atormenta, as Bom Jesus continuariam a ser bons lugares para se viver, bons refúgios para os péricles da vida que não tiveram infância nem contribuíram para a perpetuação da espécie.
Publicado em novembro/2010



