— Não, respondi um tanto ríspido.
Meio boquiaberto, Palhares retrucou:
— Vai perder a oportunidade de dar uma espinafrada nessa cambada?
— Vou.
— Tê te estranhando. Vai ver está também com o rabo-preso, disse com um risinho sarcástico.
— Rabo-preso coisa nenhuma. É que estou com uma preguiça…
— Preguiça?
— Nem vencedores do Pulitzer conseguiriam fazer um texto que redespertasse a capacidade de indignação das pessoas, amortecida pelo modus vivendi contemporâneo onde a única coisa que vale para muita gente é o TER, não importa como, mesmo que tenha de matar figurada ou literalmente o SER.
— Como assim?
— Já está cansativa, embora a cada dia mais legítima a máxima de que a conquista das coisas por meio do trabalho, da honestidade, da ética e da honra está fora de moda há tempos. Como dizíamos no passado, isso hoje é cafonice, está démodé, é boco-moco.
— Verdade das boas.
— Existem três tipos de gente, Palhares: a que tem ou não tem, em que ambas as circunstâncias advêm da dignidade e da honradez; a que não tem, mas ostenta o carrão da financeira ou a casa da Caixa; e a gente pior: a que tem muitíssimo mais do que precisa, mas em decorrência de roubo, furto, estelionato, desvio, corrupção, etc, etc, etc, que a malignidade é infinita.
— Realmente, Zêinrique.
— Esta última categoria mata indiretamente doentes nos hospitais sem leito, Palhares, porque o dinheiro que poderia financiar o sistema de saúde pública está em grande parte nos bolsos dela; essa gente que recebe benefícios indevidos do INSS é a parasita que vive, muitas vezes nababescamente, à custa alheia, inviabilizando a que esta alheia desfrute merecidamente sua recompensa por 40 anos de trabalho de sol a sol porque a Previdência, quebrada, é incapaz de suster condignamente o fiapo de vida que lhe resta. Essa gente…
— Não falo mais nada, redargui, amuado.
— Só mais uma coisinha, insistiu ele. — Em qual categoria você se encaixa?
— Pertenço à categoria dos brasileiros que nada ostenta do pouco que tem e dorme tranquilo, em paz com a consciência.
