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Indio quer Justiça, dão-lhe fósforos. Ou melhor, tacam-lhe fogo

 

A decisão de desqualificar como hediondo o crime praticado por adolescentes brasilienses, tomada pela presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Juíza Sandra de Santis Mello, foi motivo de revolta e comoção junto à opinião pública, pois praticamente absolve os assassinos ou, na pior das hipóteses para eles cumprirão um ou dois anos de uma reclusão bem confortável, proporcional ao poderio econômico de suas abastadas famílias. Fica a incineração covarde e cruel do índio Pataxó Galdino, de acordo com as capciosas leis brasileiras (eficientemente bem exploradas em seus pontos fracos por renomados advogados), como… digamos…, uma brincadeirinha pueril e inocente, talvez a única que o dinheiro farto e inesgotável ainda não havia proporcionado aos algozes do desventurado indígena.

Não é de estranhar que mais um caso de crime perverso fique impune e que contribua e incentive cada vez mais a escalada da violência, pois além das leis serem reconhecidamente ruins, muitos a interpretam tomados por irresistíveis sentimentos de pusilanimidade e condescendência, quando não por coisas piores. Parece evidente que as leis, por piores que sejam, jamais poderiam se apiedar de assassinos frios e cruéis, confessos, que premeditam seus crimes. A persistir essa inversão da lógica e dos valores morais que ora vivenciamos, não seria surpresa se essas leis, recheadas de dicotomias, chegassem ao paroxismo de culpar a vítima pelo crime que ela própria sofreu.

A decisão da magistrada foi inspirada nos depoimentos dos acusados que disseram não ter tido a intenção de matar. Ora, enquanto a maioria dos brasileiros quase nada têm à mesa e frustra-se por isso, outros se frustram por terem tudo. E por terem tudo julgam que também a tudo podem (parece que acertadamente), até mesmo, e por que não, supliciar pessoas. E aí, muito provavelmente tenham razão quando disseram que a intenção não era realmente a de matar. Talvez, quem sabe, deformar completamente o índio para ver como ficaria, ou fazê-lo dançar uma hórrida coreografia transformando-se numa fogueira viva. Como poderiam pensar em matar se com isso sua excitação perversa teria um rápido fim? Para eles, o ideal é que a pobre criatura ardesse ao máximo, mas que não passasse do limiar da resistência, conservando-se lúcido num horror indescritível a fim de satisfazer a sanha dantesca de animais ensandecidos!

Não é necessário ser um profissional da justiça para depreender que a crueldade não consistia meramente em matar. O caráter hediondo do crime foi a forma como foi cometido, o motivo torpe e sem sentido em que foi inspirado, o requinte de frieza e um vazio impressionante de senso humanitário de quem os cometeu. É claro que não se pode defender a hipótese de que se submeta ao clamor popular, a priori, as decisões soberanas e imparciais (em tese) do Judiciário. Mas seria de bom alvitre não perder de vista que o Código Penal brasileiro é antiquado, anacrônico e obsoleto, além do fato de que nem tudo que é legal é moral, razões mais que suficientes de que não se deve a tudo decidir obedecendo a algidez dos compêndios.

Antes de tudo é necessário fazer uso, sem parcimônia, do bom-senso e do discernimento, pelo menos até o momento em que possamos contar com uma Justiça moderna e eficaz, se é que a teremos um dia. O Brasil, campeão da impunidade e vergonhosamente refratário em apenar os criminosos pertencentes à sua minoritária casta de privilegiados necessita urgentemente de mudanças e de se adequar definitivamente como uma nação justa e apta a ingressar qualitativamente no cenário mundial. Casos como este do índio Galdino e tantos outros mancham, enodoam, vexam nossa reputação. É inconcebível que os que ocasionaram propositadamente a desgraça do índio, de sua família, de sua gente, tenham um fim que não o da condenação à pena máxima. Se tal não ocorrer, mais uma vez ficará caracterizado claramente que o alto poder aquisitivo e a influência das famílias dos assassinos foram o que ditaram o veredicto infame.

Certos caras-pálidas, que já havia surrupiado suas terras, a saúde e a dignidade do seu povo, dando-lhes em troca espelhos e apitos, desta vez resolveram inovar ofertando fósforos — acesos.

Publicado em setembro/1997