Irmão do Henfil vive

O CIDADÃO Betinho se foi, deixando aberta uma lacuna difícil de ser preenchida, além de enfraquecer o significado das palavras solidariedade e amor. Interessante a natureza humana: jamais o ser humano se conforma de imediato com a perda, mesmo sabendo ser ela inexorável, parte do processo evolutivo. E tais perdas se fazem sentir mais acentuadamente quando se trata de um ente querido, e Betinho o era por ter sido o expoente, o guardião maior da conspurcada cidadania.
É certo, todavia, que alguns não lamentam sua ausência, talvez até sentindo um certo júbilo pelo seu passamento. São os que sabotam a dignidade, a moral e a ética; os sofistas na interpretação das leis que absolvem ou condenam crimes — às vezes hediondos — considerando pura e simplesmente o tamanho da conta bancária de quem os comete; os que trabalham nove meses em toda a vida, e por firulas dicotômicas da lei reivindicam e conseguem aposentadorias vitalícias, milionárias, que aviltam e desonram o trabalho honesto; são os representantes legislativos, que das terças às quintas batem o ponto, mas nada fazem senão quando convocados extraordinariamente a peso de ouro, além de outros que transformam a esperança em si depositadas pelo voto em uma dinâmica e finória imobiliária politica, com compra, venda e aluguel de deputados e mandatos; são, enfim, os lacaios da imoralidade, os velhacos da indignidade, os patifes da torpeza que farejam, aqui e acolá, uma possibilidade de também chafurdar neste imenso lamaçal.
Betinho partiu, e com ele parcela considerável da esperança de construirmos uma pátria mais justa. Os órfãos estão mais órfãos, os destituídos, mais carentes, os marginalizados, mais à margem. Não que ele fosse, por si só, a tábua de salvação, mas porque emanava daquela figura frágil a essência da indignação pelas injustiças com forte poder de “contaminação”. Era um lenitivo para seu povo, o porta-voz pragmático dos menos bafejados pela sorte, possuía uma aura de dignidade capaz de implodir a prepotência e a veleidade dos que têm a obrigação de zelar pelo país.
O CIDADÃO Betinho nos deixou, mas não saiu da vida para entrar na história porque já era a própria história em vida. Foi ele um proscrito na época da ditadura dos generais porque nunca se acovardou, jamais mostrou tibieza em pugnar pelas suas convicções alicerçadas no tripé liberdade, igualdade e fraternidade. A volta do irmão do Henfil, sonhada e decantada em prosa e verso trouxe renovada esperança. Agora, porém, que soou o momento da última despedida, resta a dor da saudade que se há de superar evocando a máxima: “um homem livre nunca morre”.
Publicado em setembro/1997