“Meu Deus, meu Deus, que horror!”

Com esta frase Castro Alves exprimiu seu espanto diante da realidade dos negros escravizados amontoados nos tombadilhos dos navios sofrendo os martírios mais cruéis pela insensibilidade e a ganância dos seus verdugos no célebre poema “O Navio Negreiro”.
O brasileiro comum, o que de fato labuta, cumpre seus compromissos, paga impostos, taxas e tarifas, dá e executa trabalho, contribui realmente para o progresso sacrificando-se duramente a vida inteira com poucos rendimentos e muitas obrigações pode invocar a frase do poeta para um desabafo do que lhe dois na alma. São sentimentos generalizados de repulsa, de indignação que beira à náusea, de revolta e ao mesmo tempo desesperança pela portentosa máfia que tomou conta do país e que nele grudou de tal forma que somente a divindade pode remover. Nenhum adjetivo pejorativo, nenhuma construção de frases e orações, ainda que partissem de Camões poderiam acrescentar muito para o entendimento da dimensão a que chegaram a corrupção e a safadeza. Elas atingiram um grau extremo que já não há a menor necessidade de dissimular, já não se preocupam em escondê-las.
Quando um presidente de um país faz um esforço hercúleo para alçar um tal Jader Barbalho ao trono mais nobre da mais nobre instituição política, que é o Senado Federal, e efetua as mais inacreditáveis lutas para evitar uma CPI da corrupção, tudo fica às escâncaras, visceral, rompe-se a última fronteira da esperança de que possa haver uma tábua de salvação, uma luz no fim do túnel. A decência, a ética e a moral estão irremediavelmente mortas, esquartejadas e insepultas, deixando um rastro de devastação, fedor e desesperança.
Numa analogia que não é assim tão desproposital, a imensa manada que somos nós, o povo, se tornou escrava de uma gente impiedosa, sanguinária. As circunstâncias em que vivemos de certa forma não diferem das de nossos ancestrais de cor negra porque apesar da mudança de cenário continuamos dominados, manietados por um sistema moldado numa especificação criada pelos poucos privilegiados que só têm olhos de ver seus escusos interesses pessoais, movidos pelo desvario da ambição. Os porões infectos dos navios negreiros eram resultado do mesmo senso que prevalece entre a casta política de agora, que só difere da de então pelos métodos modernos de escravizar, compatíveis com a evolução.
O ar viciado de Brasília, produzido em gabinetes cinematográficos com seus salazes ocupantes que usam privadas folheadas a ouro e pisam em legítimos tapetes persas, aflora daquela ilha da fantasia cercada de desolação por todos os lados e esmaece o horizonte da outrora pátria-mãe-gentil acuando, humilhando, sugando a energia vital dos súditos que, justiça seja feita, ainda podem contar com o circo onde se arrombam painéis, dignidade e respeito.
“Andrada! Arranca este pendão dos ares! Colombo, fecha a porta dos teus mares!”, delirou o poeta.
Publicado em maio/2001