Não é evolução dos peixes; é involução dos humanos. Hoje em dia, qualquer bagrinho que dá uma ferroada faz-se um escândalo

Um dos fatos marcantes da minha juventude (primos e agregados em profusão) eram as pescarias que fazíamos no Rio Itabapoana e no Valão Barra Alegre, Bom Jesus do Norte/ES, nas regiões mais remotas desses cursos d´água. Pescarias mesmo, com P maiúsculo, bastando dizer que o Tio Deco é considerado um dos mais prolíficos pescadores da região — senão o maior. E como gostava da nossa companhia! Ficávamos semanas, meses no mato, dormindo ao relento e quase sempre nos impondo uma dieta de peixe frito na fogueira com arroz cozido numa panela de alumínio, negra como um corvo. Quando faltava o gênero de primeira necessidade — cigarro — aí não tinha jeito: lá ia um de nós, de bicicleta, muitas vezes a pé até à sede do município vender uns piaus e uns bagres para comprar tabaco, aproveitando para voltar com pães e roupas limpas.
Era um vício a pescaria, semelhante ao do smartphone nas mãos dos adolescentes atuais. Boas, boníssimas recordações! Havia os mais incapazes, como eu, e os talentosos na arte de pescar, como o primo Flamarion que, depois, com 25/30 anos sumiu do mapa e nunca soubemos o que lhe acontecera. Pescávamos de dia, à tarde, à noite. Águas ainda ecologicamente aceitáveis, que serviam para beber (nem sempre fervida) e cozinhar. Anzois perdiam-se muito, mas sempre tentávamos, e às vezes conseguíamos desenroscá-los quando ficavam presos no fundo, mergulhando principalmente quando no valão. Eram preciosos nem tanto pelo lado monetário, mas pela serventia: depois de um tempo o estoque atingia níveis alarmantemente baixos.
À noite, bagres e mandis pululavam, e não raro levávamos ferroadas mil na escuridão (lanternas eram artigos de luxo), unindo-se no mister de crueldade às picadas das furiosas muriçocas que voluteavam em nuvens ao redor de nossas orelhas num frenesi vampiresco impressionante. Quem ousava reclamar da dor levava uma reprimenda do tio Deco.
— Deixa de ser fresco. Seja homem.
Que raiva especialmente dos mandis, que além de concorrerem à isca com peixes mais interessantes, às vezes chegavam nos dando uma dolorosa mostra da relutância em ir para a frigideira. E nem eram saborosos como seu congênere lambari, que além de agradar mais o paladar não tinha o péssimo hábito de causar dor nos comensais.
Todo esse preâmbulo para terem uma noção mais exata da cara de muxoxo que sempre faço quando alguém é espetado por um bagre na praia e faz rebuliço. Exceto as crianças, acho a maioria dos casos, com perdão do politicamente incorreto, uma frescura. Uma das vítimas contemporâneas chegou a dizer que a dor é igual à do parto. Dona Aurinha, minha mãe que pariu 10, sete dos quais ao natural ficaria horrorizada e preferiria ver o diabo em pessoa que um bagre, segundo essa lógica.
Gerações contemporâneas, que não tiveram de conviver com o idealismo dos coturnos e dos fuzis estão meio fraquinhas, muito sensíveis, cheias de ai, ai, ai, não-me-toques. Que a espetada doi, doi, ora bolas. Mas não é necessário chamar Corpo de Bombeiros, paramédicos, processar a Marinha, evocar São Pedro. Não está havendo uma revolução dos peixes com ferrões em riste a atacar o bicho homem, tal como imaginou Hitchcock com seus pássaros. A propósito, nem injeção contra tétano tomávamos, eis que a sábia natureza armava seus entes com os anticorpos necessários à medida da exposição ao risco que ninguém hoje quer correr, tornando-se imunologicamente vulnerável, extremamente sensível. Como disse Guimarães Rosa, “viver é perigoso.”
Fujamos dos bagres, dos mandis e de outros “traíras” como eles. Mas se ocorrer um desagradável encontro não se justificaria tanto escândalo como se fosse com arraias. O espinho caudal delas é serrilhado e revestido de toxina, provocando dor intensa, necrose e infecção. Casos fatais são raros, mas há registros de gangrenas e amputações.
Produzido em abril/2016