Aqui eu guardo meus escritos.

Obrigado pela visita.

Os médicos parecem feitos de aço

“Entre abogados te veas”. Esta é uma praga antiga que se roga, em castelhano, a um desafeto. Criaram a imprecação porque alguém precisar de advogados é porque está em apuros: tanto apuros propriamente quanto o apuro de ter de arcar com normalmente altas despesas advocatícias. Os médicos são outra classe com a qual ninguém quer se envolver, mas desde o momento em que se é fecundado necessita-se deles. Quanto a estes, quem sabe as geleiras antárticas não foram inspiradas em seus temperamentos, e a expressão “estritamente profissional” advinda da impassividade com a qual executam o seu ofício, que muitas vezes é o elo entre a vida e a morte?

Até que essa frieza dos médicos em certo ponto é positiva. Já delirou ao imaginar se fosse diferente? — Buaáááá. O senhor, hic, hic, tem um câncer, chuif, chuif. E é sério, buááá — diria o médico entre lágrimas e soluços ao seu cliente. Só que não precisam exagerar na indiferença, que julgo ser para não impressionar e abater ainda mais o paciente com a trágica notícia. — Deixa ver, hum, hum. É tumor. Um melanoma carcinoma filhodaputona…, hum, hum, bem no intestino, veja só onde o puto se alojou — diria o médico com ar de indiferença similar ao de FHC em relação aos brasileiros, para arrematar com a orientação crucial para o trêmulo doente, mas, para ele, médico, como se fora uma receita gastronômica trocada entre comadres: — O senhor vai me trazer estes exames: fezes, urina, sangue, saliva, esperma, suor, lágrima, chapas de raios x, y, z, tomografia computadorizada, eletrocardiograma, radiograma, cabograma, etc. Vamos extirpar, a quimioterapia o senhor vai tirar de letra.

Não passei por esse dissabor, mas os meus 46 já começam a deixar patente a necessidade de visitas mais constante aos doutores (não fique com esse risinho enrustido, jovem leitor, você ainda chega lá). Agora mesmo fui fazer o tal do preventivo. Aliás, um aparte para esta palavra. Preventivo. Ela não soa um tanto pejorativa, não parece designar coisa de mulher? Deviam achar um termo másculo, forte, como por exemplo porradanografia, testorenismo, sei lá, algo menos degradante, mais condizente ao nosso peculiar instinto de macho alfa.

Mas dizia eu do preventivo:

— Olá, doutor — entro com um sorriso meio constrangedor no consultório e sou recebido com gentileza e simpatia profissionais que me deixam logo à vontade.

— Quarenta e…

— Seis — complemento.

— Ótimo, ótimo. Já passa um pouquinho, todo homem deve visitar um urologista após os 40, mas ainda está em tempo. Alguma queixa em especial?

— Sabe, doutor, vim pelo tal do preventivo e, por que não dizer…, como direi… — respiro fundo e digo de um só fôlego: — preciso reaver a velha flama que sinto pouco a pouco se arrefecer. Sabe, nada extraordinário, ainda funciono sem incidentes, mas o esforço para manter a regularidade tem sido maior.

— Oh, oh, oh — faz ares de muxoxo o esculápio. — Isso é natural. Primeiramente vamos dar uma olhada na sua próstata.

— Ahn?, reajo com um olhar estatelado. — Olhada com o olho ou com o quê?, relembrando com pavor de quando, aos 18, pegara uma venérea braba. O dedo robusto do médico fazia evoluções como se estivesse batendo massa de bolo. Naqueles momentos eu confessava tudo: “matei o Ghandi, o John Lennon e também joguei a bomba no jardim de infância”. Mas sua resposta afasta o pesadelo.

— Não, ah, ah, ah. Toque ainda não. Só se for necessário, se os exames mostrarem algo anormal. Mas veja, isso é tão rotineiro…, tão tranqüilo…

“Tranqüilo pra você doutor”, quase me escapa a observação e o arremate: “que é o fabricante das estrelas mas não o que vê a constelação. No dos outros é refresco, né?”

Em meio à batelada de exames prescritos, um deles elucida quão impessoais são as relações entre os profissionais da Saúde com os pacientes. É o tal do espermograma.

— Este também?

— Sim.

— E como colher o material, pode ser em casa?

— Não. O laboratorista estará te aguardando no laboratório pra ver os bichinhos ainda vivos.

— Mas…, então, tenho de…

— Isso mesmo. No banheiro do laboratório você tem que… — mostrava a mão fechada subindo e descendo repetidas vezes, com um olhar irônico.

No dia do exame, lá estou no laboratório, suando frio e com uma invulgar frieza com as imagens do sexo feminino que me vêm à mente. Uma mulher madura, loura, bonita, gestos refinados, mas igualmente muito profissional me atende.

— O espermograma? Pergunta com o tom normal de voz no salão de espera lotado de gente.

— Sim, respondo timidamente.

— O senhor vai ter de aguardar porque o doutor que vai analisar seu material está numa emergência.

Algum tempo depois ela reaparece com um vidro de maionese enrolado em toalhas de papel.

— Senhor, pode colher o material. O doutor está esperando.

Intuí que ela queria pressa, o serviço naquele dia fervilhava. Percebi também que alguns olhares se dirigiram momentaneamente a mim, inclusive os de umas mocinhas que começaram a cochichar entre si com uns risinhos contidos. No banheiro, às 10 da manhã, o sol tórrido do verão entrando pela báscula mudava meu suor de frio para quente, e bem molhado. “Diabos”, pensei. “Este não é exatamente um local apropriado para isso. Nem uma cortina para produzir uma penumbra, uma Playboy esquecida estrategicamente num canto, nada. Esses caras não têm sentimentos! Mas não podia perder tempo em elocubrações. O médico esperava, certamente já impaciente pela demora. Enfim, serviço realizado, Deus sabe como, mas miraculosamente realizado.

Felizmente o resultado dos exames me livraram da terrível dedada (apesar de sugerir a necessidade de uns remedinhos, que ninguém é perfeito), mas nunca imaginei que a transa com minha vizinha deliciosa tivesse de ser em ambiente tão hostil!

Publicado em outubro/2000