Aqui eu guardo meus escritos.

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O bolo solou…

Brasil. Década de 1970. País do futuro, que deveríamos deixá-lo se não o amássemos. País onde o petróleo era nosso e o nacionalismo uma condição básica para a sobrevivência. Naquela época reinava com muita desenvoltura o guru Delfim Neto, ministro da Fazenda que preconizava para o povão o arrocho e as dificuldades como forma de desenvolvimento. Sua tirada predileta: “precisamos deixar o bolo crescer para depois dividi-lo.”

Brasil. Véspera do século XXI. O futuro não chegou e está difícil amá-lo. A vontade é deixá-lo o mais rapidamente possível, fugir de um progenitor com tendências infanticidas. O bolo? Bem, parece que não usaram o fermento correto. Não cresceu e continua mal dividido. Também, pudera, Figueiredo, Sarney e os Fernandos são por acaso bons confeiteiros? E ainda usando ingredientes deteriorados produzidos em Brasília? O fato de o bolo não ter crescido, e suas gordas fatias terem continuado a ser devoradas por poucas, mas privilegiadas bocas gerou consequências desastrosas com repercussão especialmente negativa na saúde pública, e não é difícil entender porquê: Um corpo mal alimentado, desnutrido e sujeito a agressões por toda a sorte de microorganismos, vírus e bactérias que dividem seu habitat promíscuo, aliado a uma mente conturbada por dúvidas e indecisões acerca do futuro, subjugada por injustiças sociais acintosas, não pode ter saúde.

E aí entra um raciocínio simples e lógico: a melhoria da saúde da população passa, em primeiro lugar, pela melhoria das condições de vida dessa população, e para que isso possa acontecer é necessário dividir igualitariamente o bolo. Enquanto isso continuaremos a conviver com filas intermináveis de doentes a mendigar junto aos órgãos públicos precários uma consulta médica ou um medicamento. Continuaremos a contemplar hospitais hiperlotados sem a mínima condição sequer de higiene, com gente morrendo pelos corredores abarrotados, sem atendimento, contraindo infecções; bebês morrendo em série nas maternidades; pessoas idosas que só conseguem marcar uma consulta para daqui a um ou dois anos, ou seja, muitos deles, post mortem.

Na área odontológica então, nosso terceiro-mundismo se insinua explicitamente. Somos o país dos banguelas e das próteses antiestéticas . Sabem por quê? Porque os dentistas que prestam serviços para estados e municípios só existem para respaldar belos discursos de campanha política. Pensam eles, os políticos: lamentavelmente não temos recursos para tudo, não é mesmo? Por que cuidar de saúde se temos coisas mais prioritárias? Antes de tudo temos de salvar os bancos, temos que comprar os deputados, temos que garantir nossa sobrevivência política. Depois consertaremos o forno e faremos um belo bolo. Talvez até cantemos para os sobreviventes o parabéns…

Publicado em julho/1997

Indio quer Justiça, dão-lhe fósforos. Ou melhor, tacam-lhe fogo

 

A decisão de desqualificar como hediondo o crime praticado por adolescentes brasilienses, tomada pela presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Juíza Sandra de Santis Mello, foi motivo de revolta e comoção junto à opinião pública, pois praticamente absolve os assassinos ou, na pior das hipóteses para eles cumprirão um ou dois anos de uma reclusão bem confortável, proporcional ao poderio econômico de suas abastadas famílias. Fica a incineração covarde e cruel do índio Pataxó Galdino, de acordo com as capciosas leis brasileiras (eficientemente bem exploradas em seus pontos fracos por renomados advogados), como… digamos…, uma brincadeirinha pueril e inocente, talvez a única que o dinheiro farto e inesgotável ainda não havia proporcionado aos algozes do desventurado indígena.

Não é de estranhar que mais um caso de crime perverso fique impune e que contribua e incentive cada vez mais a escalada da violência, pois além das leis serem reconhecidamente ruins, muitos a interpretam tomados por irresistíveis sentimentos de pusilanimidade e condescendência, quando não por coisas piores. Parece evidente que as leis, por piores que sejam, jamais poderiam se apiedar de assassinos frios e cruéis, confessos, que premeditam seus crimes. A persistir essa inversão da lógica e dos valores morais que ora vivenciamos, não seria surpresa se essas leis, recheadas de dicotomias, chegassem ao paroxismo de culpar a vítima pelo crime que ela própria sofreu.

A decisão da magistrada foi inspirada nos depoimentos dos acusados que disseram não ter tido a intenção de matar. Ora, enquanto a maioria dos brasileiros quase nada têm à mesa e frustra-se por isso, outros se frustram por terem tudo. E por terem tudo julgam que também a tudo podem (parece que acertadamente), até mesmo, e por que não, supliciar pessoas. E aí, muito provavelmente tenham razão quando disseram que a intenção não era realmente a de matar. Talvez, quem sabe, deformar completamente o índio para ver como ficaria, ou fazê-lo dançar uma hórrida coreografia transformando-se numa fogueira viva. Como poderiam pensar em matar se com isso sua excitação perversa teria um rápido fim? Para eles, o ideal é que a pobre criatura ardesse ao máximo, mas que não passasse do limiar da resistência, conservando-se lúcido num horror indescritível a fim de satisfazer a sanha dantesca de animais ensandecidos!

Não é necessário ser um profissional da justiça para depreender que a crueldade não consistia meramente em matar. O caráter hediondo do crime foi a forma como foi cometido, o motivo torpe e sem sentido em que foi inspirado, o requinte de frieza e um vazio impressionante de senso humanitário de quem os cometeu. É claro que não se pode defender a hipótese de que se submeta ao clamor popular, a priori, as decisões soberanas e imparciais (em tese) do Judiciário. Mas seria de bom alvitre não perder de vista que o Código Penal brasileiro é antiquado, anacrônico e obsoleto, além do fato de que nem tudo que é legal é moral, razões mais que suficientes de que não se deve a tudo decidir obedecendo a algidez dos compêndios.

Antes de tudo é necessário fazer uso, sem parcimônia, do bom-senso e do discernimento, pelo menos até o momento em que possamos contar com uma Justiça moderna e eficaz, se é que a teremos um dia. O Brasil, campeão da impunidade e vergonhosamente refratário em apenar os criminosos pertencentes à sua minoritária casta de privilegiados necessita urgentemente de mudanças e de se adequar definitivamente como uma nação justa e apta a ingressar qualitativamente no cenário mundial. Casos como este do índio Galdino e tantos outros mancham, enodoam, vexam nossa reputação. É inconcebível que os que ocasionaram propositadamente a desgraça do índio, de sua família, de sua gente, tenham um fim que não o da condenação à pena máxima. Se tal não ocorrer, mais uma vez ficará caracterizado claramente que o alto poder aquisitivo e a influência das famílias dos assassinos foram o que ditaram o veredicto infame.

Certos caras-pálidas, que já havia surrupiado suas terras, a saúde e a dignidade do seu povo, dando-lhes em troca espelhos e apitos, desta vez resolveram inovar ofertando fósforos — acesos.

Publicado em setembro/1997

O ovo da serpente

A programação da TV aberta, acessível a todos e que adentra os lares brasileiros do Oiapoque ao Chuí, dos Pampas aos Seringais sem a mínima cerimônia, em grande proporção é deprimente e desperta indignação. Impressionante até que ponto pode chegar o ser humano na busca por lucros e um pontinho a mais no IBOPE para massagear egos e engordar contas bancárias, ainda que pela destruição da dignidade e senso do ridículo. O tal do “zero-novecentos”, por exemplo, é uma heresia. Quase na totalidade oferecendo “serviços”, é uma armadilha para os incautos, pois ao contrário de mercadorias não se pode devolver mensagens eróticas, piadas, conselhos de videntes e demais pantomimas criadas com o fito de explorar a boa-fé das pessoas. Não pagou, a linha telefônica é bloqueada.

Os programas que oferecem prêmios nunca se deram tão bem. Usam e abusam da desgraça social para vender sonhos, onde um automóvel reluzente ou uma bolada de dinheiro tornam-se atrativos irresistíveis aos olhos dos miseráveis, e a mensagem insidiosa, agressiva, verdadeira lavagem cerebral, consegue transformar probabilidades remotíssimas de acerto numa certeza estonteante do ganho.

Na telinha, a alienação é garantida. Desde as crianças que aprendem ainda muito cedo a venerar e a consumir produtos das loiras e morenas, até as ratazanas pançudas que vendiam churrasco de gato e agora sobrevivem das baixarias escatológicas e insólitas oriundas da podridão humana, amealhando pela via do mais explícito servilismo alguns milhares de dinheiros para si e seu bispo-patrão. A propósito, esse bispo vai indo muito bem na exploração da fé mesclada com ignorância. Qual um bólido, leva de roldão para seus templos a multidão desesperançada e cética com a triste realidade em busca dos milagres que acredita possível com o correr das sacolinhas. Até na Terra do Sol Nascente já marcou presença, e uns poucos japoneses, após se virem aliviados de alguns Yens, afirmam: clisto salva, nô?

A busca pela audiência a qualquer preço não respeita bom-senso, moral ou ética. Apela-se para tudo, do real ao imaginário na busca ao telespectador. Invadem a privacidade das pessoas e inventam mirabolantes situações para as colocarem em ridículo. Ridículo, por sinal, o que parece ser a nova modalidade dos programas dominicais de auditório, onde elegeram a emoção barata e às vezes forçada como atração principal. Neste último domingo das Mães, para ilustrar, um mar de lágrimas por diferentes motivações inundou os palcos. Difícil conter a emoção e impossível mudar de canal ao contemplar a loira mais celebrizada (e quiçá mais rica) do Brasil verter uma aguinha por mais uma das milhares de manifestações de tietagem por sua nascitura, que antes de conhecer a hipocrisia deste mundo já é mais paparicada que o Menino Salvador da humanidade.

Impossível não ter um nó na garganta ao reparar os olhos marejados de um famoso jogador do futebol paulista contemplando as rugas prematuras e a fisionomia sofrida e cansada de sua genitora. E os animadores, contritos, numa de bons samaritanos e impressionantemente bem articulados, quase conseguem convencer a todos da sinceridade com que se solidarizam com o drama das pessoas, e não apenas ritmados com os próprios corações em descompasso pelos picos de audiência.

Publicado em maio/1998

Quando ganhar não é bom

O goleiro Taffarel certamente não percebeu o tamanho da dimensão na vida dos seus compatriotas ao protagonizar o feito memorável de defender dois pênaltis dos ferozes holandeses, embora seu heroísmo não fora coroado com o título na partida final vencida pelos franceses.

A conquista de uma Copa do Mundo inebria o espírito despertando o sentido ufanista anestesiado pelas vicissitudes de um povo. As mãos do goleiro ao impedir que os tiros mortíferos estufassem suas malhas foram mecanismos catalisadores de angústias e decepções de uma geração apática pela falta de perspectivas, constituindo-se naqueles breves momentos, tão mágicos quanto efêmeros, um feito extremamente positivo aos seus conterrâneos na medida em que proporcionou uma catarse coletiva necessária e justa.

Por outro lado, o galardão dessas conquistas pode se tornar malévolo se não se souber administrar os sentimentos de euforia, permitindo que ultrapassem o terreno estritamente esportivo, influenciando indevidamente outros aspectos da vida nacional. É incongruente, por exemplo, que se deixe entorpecer os sentidos pela vitória no campo esportivo em detrimento da luta pela conquista de uma vida mais digna; que seja ofuscada ou enfraquecida a capacidade de mobilização na busca de justiça social pelo enleio de rápida transição que o ópio do futebol propicia; que se permitam aos oportunistas de plantão capitalizar o árduo triunfo dos atletas em dividendos políticos, como certos expoentes do poder que se arvoram em se intitularem “pés-quentes”.

Por essas e outras é que os cartolas do esporte declararam que a copa deu prejuízo do grosso à CBF, mas que esse é um detalhe insignificante frente à “importância” da obtenção da taça (que não veio desta vez). O preço que cada brasileiro paga, goste ou não de futebol, é proporcionalmente alto, muito alto até mesmo por um laurel da magnificência de uma copa mundial. À parte os mastodônticos custos com atletas, comissão técnica, convidados, estadias, traslados, jabás e as mordomias de praxe (até mesmo possíveis sonegações alfandegárias como ocorreram em 1994), os custos indiretos são incalculáveis. A começar pela excessiva e desnecessária massificação dos noticiários de toda a mídia, que ao longo dos 32 dias de disputa são dominados por assunto único, comprometendo a capacidade de discernimento das pessoas pela ausência das demais notícias do seu cotidiano, até a incrível abstinência ao trabalho, notadamente em dias de jogos em que a equipe brasileira participa, mais uma brutal paralisia festeira das tantas que já estertoram uma nação pobre e combalida.

É necessário algum comedimento ao se atribuir o valor das conquistas esportivas para que não venhamos todos a nos tornar os bonifrates de uma esfera manuseada magistralmente pelos jogadores brasileiros, às vezes, porém, a serviço dos nossos fantasmas.

Publicado em julho/1998

Abaixo o “Dia da Mulher”

No Paquistão e no Afeganistão, as mulheres vivem em condições subumanas em virtude da teocracia machista e primitiva que as impede de mostrar até mesmo o rosto. São martirizadas de todas as formas, queimadas e apedrejadas nas praças públicas quando da suspeita de infidelidade. Ainda é comum, aos 13 anos de idade, as meninas-crianças serem casadas com maridos arregimentados pelos pais sem nunca os terem visto. A partir daí seus únicos direitos são os de permanecerem vivas e procriarem.

Na Tailândia, meninas de até oito anos de idade são procuradas por pedófilos, constituindo a prostituição infantil um dos estímulos ao turismo. Nos EUA, berço da liberdade, as prisões femininas contam na maioria com guardas masculinos. Muitos deles cometem toda a sorte de abusos (a maioria sexuais) contra as detentas. Em todo o mundo a discriminação e o preconceito contra as mulheres ainda persistem mais deletérios do que se supõe.

No Brasil não é diferente. Por trás dos pseudos direitos iguais e das liberdades irrestritas em todos os aspectos sociais e profissionais, as brasileiras sofrem os dissabores de uma sociedade impregnada da cultura que ainda não se libertou do seu ranço machista. A violência física por parte dos companheiros ainda é um cancro longe de ser extirpado porque a conotação de objeto pessoal e intransferível dos machos encontra-se instintivamente ativa dentro de valores arcaicos que não se renovam por carências educacionais e instrutivas.

Mais explícitas no Brasil periférico e nas regiões economicamente mais pobres, as injustiças contra a mulher revelam sua face cruel. É a prostituição como meio de sobrevivência, mais dolorosa a infantil. São os espancamentos por companheiros alcoolizados, as desigualdades no mercado de trabalho, a discrepância salarial relativamente aos homens, maior dificuldade de ascensão social. O discurso enaltecedor da condição feminina e dos direitos da mulher no Brasil conserva perenes figuras de retórica e argumentação falaciosa. Basta atentar aos indicadores que quantificam sua influência na política, na economia e nas demais atividades profissionais, exceto talvez nas artes, onde sua própria condição feminina com os dotes naturais característicos possibilita-lhe uma interação mais ativa e efetiva.

Comparativamente há duas décadas, é evidente que a mulher brasileira galgou posições mais igualitárias, conseguiu maior autonomia e independência sobre si própria, mas estas conquistas são ainda tênues. Há que se lutar muito, principalmente na batalha que mais a fragiliza, da qual continua vulnerável em todos os flancos: a de se constituir objeto sexual muitas vezes com sua própria conivência e estimulação, cedendo aos impulsos da vaidade desmedida que juntamente com a ambição material desnudam seu corpo e sua alma para as orgias pagãs, distorcendo os fatos e forçando a leitura equivocada de que seu corpo não passa de uma bela alegoria destituída de personalidade e vontade próprias.

Não há o dia dos homens. Não deveria haver um para as mulheres. Todo dia é o delas e o deles, nos quais convivemos em igualdade e respeito mútuos.

Ou deveríamos.

Publicado em março/1999