Passaporte da felicidade

Cheguei dia desses no guichê da Transportadora União, em Bom Jesus do Norte. Mirava com olhos maliciosos os reles mortais pagadores de bilhetes à frente, na fila, até que chegou a minha vez. Estufei o peito e julguei mandar bem, como se diz:
— Uma passagem para o Rio de Janeiro, inteiramente grátis, por gentileza. Se as duas poltronas reservadas aos velhos já estiverem esgotadas, meia passagem já estará de bom tamanho.
A moça do guichê:
— Pro senhor? Idoso?
Dei uma relanceada de olhar em mim, principalmente nas pelancas embaixo dos braços e nas rugas da cara refletida no vidro do guichê, pensando respondê-la dessa forma: “sim, pra mim mesmo, modelo 6.4, zero opcionais, isento de IPVA, roncando em todas as juntas, fora o resto.” Mas falei de fato:
— Sim, tenho 64 anos.
— Trouxe a carteira?
— Aqui está.
— De habilitação não serve. Do Idoso.
— Como?
— Carteira do Idoso.
— Não sabia que tinha isso.
— Procure a Assistência Social, meu senhor; sem ela, nada feito.
Avaliei momentaneamente contra-argumentar, encarecer à atendente dar uma olhada mais minuciosa na minha carcaça e aferir com um simples cálculo matemático a data de fabricação expressa na carteira de motorista, mas acabei desistindo. Seria inútil, ela havia sido incisiva.
— Aceita cartão de crédito?
— Sim, senhor.
“Dos males, o menor”, resignei-me, pensando neste país das jabuticabas que, segundo voz corrente, é o único que produz as deliciosas frutinhas, sendo essa exclusividade motivo de pilhérias dos próprios brasileiros que se referem pejorativamente a elas para indicar mazelas tupiniquins. “Deve ser mais uma jabuticaba esse negócio de carteirinha de velho”, pensei. “O país tem que dar emprego e os políticos dependem disso para ganhar votos; quanto mais burocratiza, mais cabides de emprego, e mais votos. A tal da carteirinha”, continuei a elucubrar, “seria para confirmar a confirmação dos meus dados pessoais, algo absurdamente redundante.
Dos meus parcos leitores, pelo menos dois são jovens, conheço-os bem, e estes podem até ter conhecimento de que no Brasil houve uma jabuticaba nos anos 1980 denominada Ministério da Desburocratização, mas obviamente não a vivenciaram. Lembro-me perfeitamente do titular da pasta, ministro Hélio Beltrão, que lutava como um Napoleão desarmado e sem exército contra a burocracia e os cartórios (cartórios mesmo, de reconhecer firma, autenticar fotocópias, etc., e cartórios corporativos os mais diversos de que pode supor nossa vã filosofia). Desde aquela época, vejam só, Beltrão tentava acabar com o tal do reconhecimento de firmas, que nada mais é do que prejulgar o cidadão como desonesto na cara dura e ainda auferir lucros exorbitantes com a ofensa. E só recentemente, quase 40 anos depois, essa jabuticaba foi pocada (Lei 13.726/2018, de outubro). O lobby inescrupuloso dos cartórios resistiu a tudo e a todos nesse tempão.
O então ministro, sufocado pela papelada e pelo papelão dos burocratas (reproduzem-se como coelhos) ainda tinha espírito para fazer troça. A respeito da criação de uma tal de Sudeco, para cuidar do “desenvolvimento do Centro-Oeste”, ele perguntou: “por que não juntam a Suvale (Superintendência do Vale do São Francisco) com a Sudeco e criam a Suvaco? Seu assessor foi ainda mais espirituoso: “O perigo, senhor ministro, é eles criarem a Superintendência Rural do Baixo Amazonas, a Suruba!”
Retomo o fio: dias depois da viagem procurei a Ação Social da prefeitura de São José do Calçado para obter o passaporte que me abriria as portas da felicidade.
— É lá no Cras, informaram. “Cras…, Cras… Não podia ser aqui mesmo?”, contive a vontade de perguntar. Chegando no Cras fui atendido com atenção e gentileza, cumpre ressaltar:
— Pois não?
— Vim fazer a Carteira do Idoso.
— Trouxe os documentos? O senhor já é cadastrado no NIS?
— Claro, claro. Mas tem um probleminha: aqui está minha habilitação, mas o NIS vou ter de consultar o INSS.
— Não, senhor, interrompeu-me a diligente funcionária, sem se dar conta de minha instantânea, embora costumeira, frustração. — Não pode ser habilitação, tem que ser Identidade mesmo, CPF, Título de Eleitor, Certidão de Nascimento ou de Casamento, comprovante de residência, de renda… E tem mais: não é esse NIS do INSS, é outro NIS.
— Outro NIS?
— Sim.
Pensei: “NIS deve ser a sigla de ´Nefelibatas Impolutos Sadomasoquistas´ que abundam os labirintos da burrocracia brasileira.
— Esse NIS aí acho que não tenho. Tem certeza que o outro NIS não serve?
— Tenho. Mas não tem problema, posso providenciar um agora mesmo. E os demais documentos?
— Na minha habilitação tem número de identidade, CPF…
— …Mas não tem as datas das emissões, por isso é que precisamos deles.
E cá voltei para vasculhar meu velho arquivo de pastas numa era em que já se projetam moradias para os terráqueos na Lua. Retornei ao Cras com minha primeira e única carteira de identidade emitida no ano da Graça de 1974, que guardava como souvenir, embora já há alguns anos, melhor dizendo, há muitos anos evito olhá-la para não reacender minha vergonha daquele cabelo emaranhado à moda descolada hippie, comprido até nos ombros, a cara chupada a lembrar pessoas acometidas de escorbuto.
— Minha filha, eu recebo as contas de água e luz por e-mail e as pago pelo aplicativo do banco. Portanto, não lido com esses papéis. Serve o carnê da provedora de Internet? Ah, e esse comprovante aqui de que votei no Capitão, serve para substituir o título de eleitor?
Serviram, ufa! Alguns instantes depois da moça meter bronca no computador:
— Prontinho, senhor. Seu NIS o senhor pode pegar amanhã (estávamos numa quinta-feira), mas a Assistente Social só atende às segundas e terças, então eu sugiro que o senhor venha num desses dias.
— Ok, querida. Obrigado pela atenção.
Segunda-feira fui, serelepe, obter meu prêmio velharal. Mais atenção e gentileza, desta vez pela Assistente Social Roberta. Com o NIS em mãos, balancei-o alegremente:
— Minha carteira de velho, enfim, não é Roberta?
— Hummm. Não. O sistema vem apresentando problemas e tem demorado até 45 dias. Já está aqui na tela, olha, virou o monitor em minha direção. Mas para o senhor tê-la na mão…
― …Quarenta e cinco dias, não é?
Moral da história: eis um pequeno exemplo de burocracia desnecessária, praga a oprimir o desenvolvimento do nosso país. Um documento único que reunisse todas as informações necessárias do “eu” de cada um, inclusive as necessárias para a concessão desse e de outros benefícios e obrigações penso que aliviaria em muitos milhões, talvez bilhões, os cofres públicos. Para se ter uma ideia dessa trágica circunstância, o Banco Mundial, em 2017, publicou um ranking entre os países para medir, por exemplo, o tempo necessário para abrir um negócio. Num conjunto de 167 países, o Brasil ocupa a posição 161. A pesquisa estima que, por aqui, são necessários em média 79 dias para cumprir os procedimentos legais de abrir uma empresa. Na Nova Zelândia, a primeira colocada nesse quesito, leva-se menos de 1 dia para a mesma finalidade.
Dá-lhe, capita. Não vale desanimar, hein?
Publicado em dezembro/2018