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Pit Bull morde; poder público, assopra

É difícil tocar de modo imparcial num tema tão comovente como o da menina de cinco anos que foi atacada gravemente por um cão Pit Bull na calçada de sua casa, em Bom Jesus do Itabapoana. Só quem não é pai nem mãe, como boa parte dos proprietários desses animais pode, embora não devesse deixar de aferir na plenitude o que significa a dor de sentir as dores físicas e psicológicas de um filho, principalmente na idade da inocência, sem nenhuma possibilidade de se defender contra um gigante de tamanha força, ferocidade e proporção.

O brasileiro adora cachorros. Segundo pesquisas, existe hoje no país um animal para cada cinco habitantes (o dobro recomendado pela Organização Mundial de Saúde). E isso não seria um problema se, hoje em dia, não tivesse mudado o perfil dos donos de cachorros. Antigamente se procuravam cães para companhia, para guarda ou até mesmo para exibição. Hoje aumentou a proporção da procura de cães considerados de instinto bravio, como Rottweiler, Pit Bull, Dobermann, Fila Brasileiro, Mastim Napolitano, Bull Terrier, entre outros. E o lamentável é que parte dos que procuram essas raças o fazem por puro exibicionismo, para demonstrarem força e poder, para aduzirem das feras a aura da valentia que não possuem, o antídoto para a própria insegurança de caráter. O resultado? Mais de 1.000 ataques de cães registrados diariamente no Brasil, segundo as mesmas pesquisas.

O Pit Bull é considerado por muitos o melhor cão de combate, capaz de vencer oponentes duas ou até três vezes maiores. Sobressai-se pela coragem, agressividade, vigor, robustez, agilidade, incansável persistência, habilidade para lutar e morder, grande resistência física, tolerância à dor e enorme capacidade de recuperação dos ferimentos. Por isso é considerado um cão assassino, desenvolvido ao longo do tempo para se tornar imbatível em lutas contra outros cães. E muito embora não se possa acusá-lo de predador humano, um “defeito” no próprio instinto influenciado talvez por essa manipulação humana (por natureza, os animais só atacam quando estão com fome ou quando se sentem ameaçados) o levam, infelizmente, de forma sinistramente progressiva a agredir as pessoas, muitas vezes seus próprios tutores. Segundo especialistas, o Pit Bull, quando ouve barulho, algazarra de crianças, ruídos que não está acostumado, ele interpreta como situações hostis, tal como numa rinha de briga. Daí atacar indiscriminadamente.

Pesquisei na Internet e transmito algumas informações científicas. Por exemplo, quando este animal morde ele trava a mandíbula, e nem o dono consegue soltar a vítima porque ele é um cão branquiocefálico (cabeça curta e larga), que tem o masseter (músculo de mastigação que movimenta a mandíbula) curto, e no desenvolver de uma mordedura rápida e com violência entra em tetania (troca de ions muito rápida), o que faz com que a mandíbula trave e não abra, fato que, ao contrário do que pensam alguns, é totalmente involuntário, inerente à natureza da raça.

O caso da menina bom-jesuense tem a agravante de o cão ter escapado de sua própria casa, sinal de que não havia o cuidado e a segurança necessários na guarda do cachorro, que pode ser considerado uma arma perigosa e, às vezes, letal. A negligência encontra, todavia, o beneplácito, a brandura da lei brasileira. Na França, quem tem um cão de raça agressiva é obrigado a registrá-lo e pagar uma apólice de seguro para cobrir eventuais danos; em diversos estados alemães só pode possuir um cachorro perigoso quem tem mais de 18 anos e nenhuma passagem na polícia; na maioria dos estados americanos quem decide criar um cão pela primeira vez não pode comprar animais como os Rottweiler, Dobermann ou Pit-Bull, ao contrário do que ocorre no Brasil. Lá, para adquiri-los, é necessário ser maior de idade e passar por cursos de treinamento. Só depois as autoridades concedem o registro do cão. Assim, percebe-se claramente o deslocamento do eixo de responsabilidade do animal para o seu proprietário, o que parece muito mais racional e eficaz no combate às agressões.

É preciso que o Brasil promova uma legislação dura com relação aos donos dos animais, para dar conta das situações em que estes efetivamente causem lesões a outras pessoas. Nos Estados Unidos, se um cão mata, o dono é preso e condenado a até 12 anos de cadeia, o mesmo acontecendo na Inglaterra e em outros países europeus. Em nosso país, é diferente. Em tese, o dono do cão assassino pode até ser condenado por homicídio culposo, mas isso é raro, e são também raríssimos os casos em que o dono do animal é condenado a indenizar os danos materiais (despesas com atendimento médico) e morais (a dor, o medo, os problemas psicológicos) sofridos pelas vítimas.

Nossos vereadores, por outro lado, podem e têm autonomia para criar leis e códigos municipais. Não precisam se envergonhar em propiciar dispositivos avançados em cidades interioranas como as nossas. Que tal se todos os cães bom-jesuenses, apiacaenses e calçadenses, de raças consideradas violentas ou com peso superior a 20 quilos tivessem de usar coleira, guia e focinheira em seus passeios pelas praças e ruas das cidades? Que tal se os condutores tivessem de portar pazinhas e sacos plásticos para limpar a imundície nos logradouros públicos? E se esses grandalhões só pudessem ser criados em casas com muros altos, devidamente registrados e seus proprietários notificados oficialmente de suas responsabilidades?

E o Poder Judiciário, que tal fazer cumprir a lei sem condescendência? No caso da menininha bom-jesuense, descaso e negligência, que aliados à omissão do Estado punitivo nos leva a temermos, a ficarmos constantemente sobressaltados pelo destino de outras crianças.

Publicado em novembro/2004