Aqui eu guardo meus escritos.

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Torcedor atormentado; ou, seguro morreu de velho

 

Há algum tempo eu li que em algumas cidades brasileiras seriam instalados banheiros públicos individuais, confortáveis, cheirosos, com direito até a música ambiente. Com uma moeda de cinquenta centavos o freguês poderá usá-los por 15 minutos, após o qual a porta se destranca automaticamente depois que uma gravação avisa que o tempo acabou. Imaginando que Bom Jesus/RJ pudesse ter um desses, dei asas à imaginação e produzi este texto de cultura inútil que, no entanto, pode servir para evitar constrangimentos. Como veremos, é sensato andar por aí com algumas moedinhas de cinquenta centavos.

Consta que um homem, cujo fanatismo por uma farra só é menor que a paixão nutrida pelo Vasco da Gama tomou um porre homérico numa noite em que o seu clube foi rebaixado para a Segunda Divisão. No outro dia, puto da vida pelas gozações inevitáveis, comprou o jornal numa padaria do Bairro Lia Márcia, onde mora, e foi para o trabalho no Pimentel Marques. No caminho, passou a se contorcer em dores, intestino em polvorosa.

Aquela feijoada não pegou bem, pensava, ao mesmo tempo em que amaldiçoava até a quinta geração daqueles pernas-de-pau que podem ter brincado de tudo na infância, menos de jogar bola. Os pernas-de-pau, por outro lado, pareciam reagir telepaticamente, liberando à distância poderosas emanações químicas que radicalizavam a cólica intestinal do agora suado e esverdeado torcedor. Não vai dar para chegar ao trabalho, constatava, nesta altura andando meio de lado, até que apareceu tal qual um oásis o seu maior objeto de desejo naqueles trágicos momentos: o banheiro público da Praça Governador Portela.

Tanto melhor que era um daqueles modernos, limpinhos, um oásis na amplitude de contrações e flatos perigosamente úmidos. Em desespero, vasculhava febrilmente os bolsos em busca de uma moeda de R$ 0,50. A muito custo achou uma no bolsinho frontal da calça. Era a única. Depositou-a no compartimento específico. A porta abriu e ele entrou de supetão.

Lá dentro, alívio total. Sentado no trono asséptico, aliviava-se lendo o jornal e ouvindo música. Não reparou no aviso de que uma moeda dava direito a 15 minutos. Extrapolou o tempo na leitura tentando entender como o seu time querido dera tanto vexame. E aquele coro infernal martelando na sua cabeça: “ão, ão, ão, segunda divisão. Uma voz metálica tirou-o da abstração: “tempo esgotado”.

Simultaneamente viu a porta destravar e um vento forte a escancarar. Ele ficou ali, sentado e em pânico sob os olhares de curiosidade dos transeuntes num local de intenso movimento. Uma provecta senhora passou e fez o sinal da cruz. Uma menininha beliscou a mãe: 

— Mãeeee, o que ele faz ali?

Um gaiato perguntou:

— Me vende um quilo de pregos?

Um outro:

— E aí cagão?

Teve até um, metido a poeta, que resolveu juntar uma pequena multidão para recitar suas obras-primas literárias:

— Aqui termina a deliciosa obra de um cozinheiro.

E continuava:

— Neste lugar solitário/é onde os fracos fazem força/e os valentes se cagam.

— Quando fores ao banheiro/é favor trazer papel/porque merda não é tinta/e dedo não é pincel.

— Sentado na privada/sinto uma emoção profunda/a merda bate na água/e a água bate na bunda.

E por aí afora.

O torcedor, coitado, a ponto de sofrer um enfarte, observava a aglomeração com um olho entre as frestas do jornal que usava para se encobrir e permanecer no anonimato, tentando elaborar um plano para sair daquela encrenca. E a multidão crescendo, crescendo e excitando o entusiasmo dos que queriam aparecer através da desgraça alheia, como um cidadão pretensamente sério, compenetrado, com ares de orador e um livro debaixo do braço, que emergiu abrindo caminho com autoridade no meio da multidão, para filosofar:

— Vejam um exemplo de despojamento — disse, apontando o dedo para o local onde convergiam todos os olhares. — Este digno ser humano não carrega consigo o sentimento da vergonha quando das necessidades fisiológicas. Quem, de vós, tem a coragem de fazer, de público, um ato tão natural quanto este de cagar? — perguntava, aproximando-se, devagar, do infeliz.

Já na porta, continuava o discurso:

— Percebam vós que até este cheiro… — farejou apuradamente, acenou com um gesto como a pedir um tempo para a platéia e, baixando a voz, fez uma pergunta ao pobre coitado:

— Mesmo com todo esse vento, rapaz — tapou as narinas. — Do que anda você se alimentando?

Ao que uma vozinha sumida, trêmula por trás do jornal, retrucou:

— Te dou cinquenta reais em troca de uma moeda de cinquenta centavos!

Publicado em março/2000