Vai o homem, fica o mito

Não há o que acrescentar ao que já foi dito a respeito do homem, do político, do ser humano Mário Covas. Quaisquer adjetivos que exprimem qualidade extraordinária que caracteriza alguns exemplares da raça humana seriam repetitivos, reprisados que foram à exaustão por amigos, conhecidos, parentes, correligionários. Ele foi um raro caso de unanimidade porque agregou na admiração à sua profícua obra até o mais ferrenho adversário, gente que se considerava sua inimiga política número um.
Nunca é demais, porém, insistir pela conveniência dos homens públicos se inspirar em seu legado para que um sistema político torpe, aético e amoral possa ganhar um pouco de retidão. Aos demagogos, que se espelhem em sua conduta de pessoa autêntica; aos corruptos, que uma centelha de sua honestidade acenda o estopim do caráter, da lisura; aos filhos ingratos, traidores da nação, submissos à hidra colérica, à tirania dos opressores internacionais, evocar e assimilar um naco de seu patriotismo, do amor que nutria pela pátria desencadearia surpreendentes reações de civismo.
“Saio da vida para entrar na história”. Esta frase, cunhada no momento mais dramático da vida do presidente Getúlio Vargas nos últimos minutos de sua existência, traduz a estranha característica do ser humano, de cultuar os grandes homens (convicções ideológicas à parte) somente após sua eterna partida. Não foi diferente com Covas. Essa cultura conspira para uma evolução social mais rápida, na plenitude de abrangência porque as qualidades ficam turvadas em vida devido à consciência da imortalidade que guarnece o homem. Isso acirra as diferenças, robustece a vaidade, tolda a capacidade de reconhecimento e valorização aos empreendedores, aos visionários. A morte, no entanto, fornece a antítese a esse comportamento porque relembra duramente a inexorável finitude da vida, e essa negação da eternidade nos breves momentos que dura a estupefação pela dama da foice torna o ser humano sensível e solidário.
Há inovações, todavia, a partir da morte de Covas. Sua existência terrena foi tão diferenciada que produziu um fenômeno capaz de tornar realidade a utopia da edificação moral. Seus conceitos são de tamanha grandeza que não haverá quem não se retraia ante o impulso aos malfeitos. No mínimo, os pequenos de caráter não poderão aludir suas nocivas ações à falta de bons exemplos, pois a jurisprudência firmada por Covas é completa.
Foi-se o homem, ficou o mito. E desse mito seguramente a inspiração para o exercício da boa política.
Publicado em abril/2001